Seminários Interdisciplinares – LETA03: referências

MUNANGA, Kabengele. Educação e diversidade cultural. In: Cadernos Penesb: discussões sobre o negro na contemporaneidade e suas demandas. n.10. Rio de Janeiro; Niterói: EdUFF, 2008/2010.

CANDAU, Vera. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. In: Revista Brasileira de Educação. v.13. n.37. Rio de Janeiro: ANPEd, jan./abr. 2008.

LEIS, Héctor Ricardo. Sobre o Conceito de Interdisciplinaridade. In: Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. v. 73. Florianópolis: UFSC, ago. 2005.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. In: Revista Sociedade e Estado. v.31, n.1. Brasília: Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, Janeiro/Abril, 2016.

SODRÉ, Muniz. Um novo sistema de inteligibilidade. In: Questões Transversais. v.1, n.1. São Leopoldo: Pós Graduação em Ciências da Comunicação – UNISINOS, 2013.

Interdisciplinariedade & Diversidade Cultural na educação brasileira: debates & desafios

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Nesta participação no programa televisivo “Salto para o Futuro”, ocorrida cinco anos atrás, Vera Candau  faz projeções acertadas e realistas sobre as demandas das sociedades multiculturais, tais como a brasileira, e a necessidade que delas se desdobra em transformar os recursos do ensino-aprendizagem. Cliquem na imagem para assistir o vídeo.

África: saberes & valores

O PROJETO AFREAKA é certamente uma das melhores fontes em língua portuguesa para obtermos acesso a um conhecimento atualizado, rigoroso e instigante sobre as culturas africanas. Na postagem a seguir apresenta-se uma breve síntese de crenças e práticas que se encontram ainda profundamente enraizadas e ativas nas sociedades que compõem o “continente negro”. A persistência dessas tradições, que não se dá de uma forma inercial, nem alheia aos fluxos da cultura globalizante, deve ser considerada não somente como forma de resistência, mas também como iniciativa concreta de revitalização de matrizes civilizacionais alternativas aos modelos eurocêntricos.


afeaka site 03-2013


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conceitos milenares da cultura africana

Na parte austral da África, existem dois modos bem distintos de estilos de vida, o anterior e o posterior à chegada dos europeus. E, de modo geral, o que se encontra hoje, depois da (re)conquista da independência, é uma intercepção das duas culturas, que começam a caminhar juntas para formação de um novo modelo, com um forte processo de revalorização dos costumes locais. Nesse contexto, algumas das tradições africanas mais antigas continuam vingando no mundo contemporâneo. O que não é nada fácil, uma vez que a cultura ocidental e o modo de vida urbano são de grande contraste com as requisições de tais costumes. A razão pela qual prevalecem é a força e o grau de enraizamento e identificação que essas tradições possuem dentro das sociedades autóctones. São costumes não apenas orgânicos a uma ou outra região, mas a grande parte de um continente. Conheça cinco dessas tradições milenares que permeiam o pano de fundo do mundo contemporâneo:

O conceito de tempo: nas sociedades tradicionais africanas não existiam padrões de medidas como tempo, distância, peso etc. O tempo como um conceito linear era algo inconcebível e passado, presente e futuro indefinido não existiam. Tempo se tratava apenas de uma simples composição e sucessão de acontecimentos. Existe um passado distante (época dos ancestrais) e um futuro imediato, que tem relação direta com o que está acontecendo no presente. Na concepção africana, o tempo tem que ser experimentado para ser real. O tempo é centrado no homem e gira em torno dele, em outras palavras, é o homem que faz o tempo e não o tempo que faz o homem. Sem atividade humana, o tempo não existe.

Totem: A primeira unidade básica da sociedade africana é a família e a segunda é o totem ao qual pertencem. Os grupos de famílias que dividem o mesmo totem formam um clã. O objeto contém uma conotação espiritual, representando o ancestral (ser maior) de cada sociedade. Os totens definem laços matrimoniais, culturais e históricos e são representados por seres da natureza, na maioria das vezes animais, que passam a ser sagrados e protegidos pelo grupo.

Medicina tradicional e feitiçaria: Em muitas sociedades africanas acredita-se na existência de duas energias opostas e contraditórias. Enquanto os bons espíritos, representados pelos médicos tradicionais (curandeiros) concebem a força do bem, a feitiçaria pinta a força do mal. Em ambos os casos, seus representantes são apenas mensageiros dotados de certas habilidades que o permitem se comunicar com os antepassados. Na maioria das sociedades, a prática de feitiçaria é considerada ilegal e pode ser penalizada.

Lobola: Em termos simples, lobola é o pagamento que o noivo deve aos pais da noiva para concretizar o casamento. Existe uma negociação intensa para decidir a quantia a ser paga, realizada normalmente pelos pais dos prometidos. Nas sociedades rurais, o mais comum é o pagamento em gado. Nas cidades, as opções são mais abrangentes, sendo dinheiro o usual. Na África, o casamento é cerimônia mais intensamente celebrada, responsável pelas maiores e mais esperadas festas do ano. E as comemorações começam já durante a negociação do lobola, que é regado a bebidas e confraternização entre as duas famílias. A tradição é ainda polêmica, tendo em visto as questões de igualdade de gênero. Defensores dos direitos da mulher tanto a atacam como a defendem. Tem quem alega que a noiva está sendo comprada e tem quem afirma que a tradição reforça a importância da figura feminina tanto no casamento quanto na família, sendo que esta última sofrerá um déficit e deve ser recompensada.

Continuidade: O conceito de continuidade se baseia na crença de uma energia vital infinita, responsável pelo fluir do universo e presente em seres vivos e inanimados. Uma pessoa, por exemplo, é apenas a embalagem de tal energia. Quando alguém morre, o corpo está deixando de existir, mas a energia dentro dele permanece no universo e segue crescendo, acumulando-se infinitamente. Isso explica, por exemplo, o respeito aos anciões, que por serem mais velhos possuem mais energia vital acumulada, e consequentemente, mais sabedoria.

(Fonte: Zimbabwe’s Cultural Heritage, de Pathisa Nyathi)

FONTE: Afreaka

lei 10639, diversidade cultural & pedagogias descolonizadoras: articulações estratégicas

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Considerando a década transcorrida desde a promulgação da Lei 10639, o artigo a seguir apresenta um panorama lúcido e abrangente sobre o papel crucial que a educação desempenha no processo de ressignificação da identidade cultural brasileira que presentemente vivenciamos.


Cultura e história da África: dez anos da Lei 10.639

Christian Fischgold

Em janeiro de 2003 o então presidente Lula e o ministro da Educação Cristóvam Buarque assinaram a Lei 10.639, que instituía a obrigatoriedade do ensino de cultura e história africanas nas escolas brasileiras. Em 2008 a Lei 11.645 incluiria a historia e cultura indígenas nos currículos escolares. Apesar disso, a história dos países africanos e da cultura afro-brasileira e indígena em toda a sua diversidade permanece pouco conhecida para a maioria dos brasileiros e os dez anos da assinatura da lei, na prática, contribuíram pouco para mudar essa situação.

O IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental) fez um levantamento sobre a situação da aplicação da lei nas escolas e universidades. O que foi detectado é que existem poucos projetos isolados nas escolas, as universidades não têm disciplinas específicas para tratar o tema e, quando há, não é obrigatória. A verba pública destinada à implementação da lei foi utilizada para realização de cursinhos, seminários e festas, mas não modificou a resistência ao conhecimento da cultura afro-brasileira e do estudo da história dos africanos no Brasil. Um exemplo é o caso recente de alunos do 2º e 3º ano do ensino médio de uma escola em Manaus que se recusaram a apresentar um trabalho sobre cultura africana por acharem uma ofensa a sua religião e aos seus princípios morais.

Apesar dos modestos avanços da lei algumas mudanças podem ser notadas nos últimos anos, seja em virtude de outras políticas afirmativas do governo, seja em função do empenho e pressão de setores da sociedade civil. A última década registrou um aumento na oferta de títulos e autores literários africanos, especialmente dos PALOPs (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), nas estantes das livrarias e bibliotecas do país. Boa parte desse aumento se deu através do esforço e ações de editoras que passaram a investir mais nesses autores. Nomes como Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Ondjaki, Paulina Chiziane, dentre outros, passaram a figurar com prestígio em eventos acadêmicos, festas literárias e bienais do livro.

Esse diálogo com autores e a história dos países africanos é importante para mudar a forma como o Brasil se vê, pois, segundo o Ministério das Relações Exteriores, o Brasil tem a maior população negra fora do continente africano, e nossa história e cultura está repleta de signos e influências desses países.

Quem pode falar

Um dos pilares da ofensiva colonial era o domínio discursivo a respeito do “outro” africano ou indígena. Juntamente com as pressões políticas, econômicas e militares, a colonização deu-se também por meio da cultura, através de uma extensa produção discursiva escrita desde as ultimas décadas do século XIX até meados do século XX, em que se procurava representar o negro africano (e também o indígena brasileiro) como inferior e subalterno, justificando a opressão em função de sua “civilização”. Os exemplos podem ser facilmente encontrados em obras literárias como Coração das Trevas de Joseph Conrad e O Fardo do Homem Branco de Rudyard Kipling, mas também nos livros de história. Sem direito a voz, o africano foi refém de representações carregadas de preconceitos e estereótipos sob o ponto de vista do colonizador europeu. A grande maioria dos livros de história escritos nesse período foi redigido por colonizadores ingleses, portugueses, franceses ou alemães. Romper o eurocentrismo característico do discurso do colonizador presente nessa bibliografia é uma das características do chamado discurso pós-colonial, “conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado” (Boaventura de Sousa Santos, A gramática do tempo, Cortez, 2006). Desde meados dos anos 80 há uma intensa produção literária e acadêmica que procura reler a produção discursiva colonial nos países africanos.

Combater a presença desse eurocentrismo nos nossos currículos escolares, mexendo no que era “natural”, é um dos pontos principais que a instituição da Lei 10.639 procurava atingir.  No entanto, outras ações do Estado obtiveram mais sucesso no sentido de valorizar e incluir a cultura africana e indígena na sociedade brasileira. Além das cotas nas universidades, o lançamento de editais culturais voltados especificamente para negros no final de 2012 pelo MinC gerou um importante debate. Enquanto a ministra Marta Suplicy respondia acusações de que o edital era uma forma de discriminação, um estudo da pesquisadora Regina Dalcastangè (UNB) lançado na mesma época, apresentava uma pesquisa quantitativa intitulada Personagens do romance brasileiro contemporâneo, na qual foram analisados 258 romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004, descortinando importantes números acerca da produção literária brasileira. Segundo a pesquisa 72,7% dos romances publicados foram escritos por homens; 93,9% dos autores são brancos; 82,6% das obras tem a metrópole como local da narrativa; 58,9% do contexto dos romances é a redemocratização, seguida da ditadura militar com 21,7%; o homem branco é, na maioria das ocorrências, representado como artista ou jornalista, e os negros como bandidos, pobres ou contraventores; já as mulheres, como donas de casa ou prostitutas.

Na TV e no cinema esse quadro não é muito diferente. A pesquisa evidencia quem ainda detém o poder das formulações discursivas no Brasil e o quanto nossa produção cultural é uma repetição de lugares-comuns.

A autodeclaração de cor

Um importante mecanismo que ajuda a medir as consequências e reflexos das ações afirmativas e das políticas de valorização das culturas africanas e indígenas no Brasil é a autodeclaração de cor.  Dados do censo do IBGE divulgados em 2011 revelam que, pela primeira vez, o número de pessoas que se declaram negras e pardas é maior do que o das pessoas que se declaram brancas. Entre os mais de 191 milhões de brasileiros, 91 milhões se declaram brancos (47,7%), 15 milhões pretos (7,6%), 82 milhões pardos (43,1%), 2 milhões amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%). Somando negros e pardos, são 97 milhões.

Em entrevista recente a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha ressalta que o mesmo movimento se deu entre as comunidades indígenas, havendo um aumento de 250 mil índios em 1993 para 817 mil em 2010. Segundo ela “O que realmente mudou é que ser índio deixou de ser uma identidade da qual se tem vergonha. Índios que moram nas cidades, em Manaus, por exemplo, passaram a se declarar como tais.” (Manuela Carneiro da Cunha, entrevista ao caderno “Prosa e Verso”, O Globo, 16/2/2013).

Ampliar o número de vozes discursivas entre as camadas menos favorecidas da sociedade constitui-se fator urgente para a democracia brasileira. Contemplar a diversidade discursiva é romper com uma perspectiva já conhecida de abordagem do conhecimento. O Brasil funda-se na diversidade e negar a determinados setores da sociedade a possibilidade do discurso é uma violência simbólica. Pensar currículos escolares que abram a escola para a realidade, descolonizar – e reescrever – os livros de história e descentralizar a produção discursiva são desafios que ainda se colocam. Ter consciência desse desvio de representação é condição fundamental para que possamos criar mecanismos capazes de equilibrar essa balança. Para isso, a efetiva implementação das Leis 10.639 e 11.645 é um importante instrumento do qual não podemos abrir mão.

FONTE: Última Instância

diferença & autognose cultural: para nos vermos de perto, é preciso olharmos através dos Outros

 

Espalhando-se e ampliando-se entre segmentos diversos da sociedade brasileira, os sentimentos de solidariedade e de preocupação para com os grupos indígenas podem e devem inspirar também uma reflexão mais profunda sobre os significados da diferença cultural, incluindo-se aí as suas implicações práticas em nossas verdades cotidianas e nas nossas expectativas coletivas. No artigo a seguir, o antropólogo Renzo Tadei explicita os desafios que se colocam quando, para além do desejo de ajudar – que tantas vezes se confunde com o desejo de tutelar –, nos abrimos para o desejo de compreender o Outro, de intercambiar pontos de vista, de permitir que outras formas de pensar e atuar sobre a realidade nos interpelem e nos transpassem. São essas as experiências que tanto fundamentam convicções quanto fertilizam os questionamentos através dos quais renovamos nossas identificações e amadurecemos nossos percursos de vida.

Como discute Muniz Sodré em Reinventando a educação, o “jogo existencial da diversidade não é conciliatório, mas agonístico (a dinâmica conflitiva entre os grupos e no interior deles) e, não raro, politicamente reivindicativo”. É importante ter clareza quanto ao caráter político dessas demandas, buscando não reduzi-las nem à mobilização dos partidos e dos lobbies, nem a meras disputas por bens e interesses econômicos, perspectivas que menosprezam ou silenciam acerca do entrechoque de valores éticos e de mundividências sempre acionado pelas dinâmicas da diversidade humana.

No cerne das polêmicas agora levantadas por conta da situação dramática em que se encontra o povo Guarani-Kaiowá, digladiam-se processos simbólicos, formas discursivas e representações imaginárias através das quais sujeitos e populações constróem relações de alteridade. Tais relações são exercidas por meio de linguagens e de (pre)conceitos que pretendem avaliar o Outro, o estrangeiro, o estranho – enfim, todo aquele que é reconhecido como expressão de uma diferença excessiva, como produto e como reprodutor de uma ordem diferencial. Por isso mesmo que, frente ao Outro, incontornavelmente, as certezas, os implícitos, as convenções, todos os pontos cardeais passam a exigir recalibragem e relativização. Quanto mais difícil for instaurar essa disposição auto-reflexiva entre os protagonistas das relações de alteridade, mais facilmente a incompreensão e a violência se estabelecerão entre eles.  

No Brasil contemporâneo, frente a uma sociedade balizada pela sobrevalorização dos parâmetros europeus e estadunidenses de civilização, o Outro pode ser encarnado em indígenas, em quilombolas ou em nordestinos; em mulheres “independentes” ou em “minorias” sexuais; em sujeitos e povos marcados pelos signos da “raça” ou da mistura degradante; nos adeptos de religiões “primitivas” ou “fanáticas”; nos imigrantes oriundos dos mais distintos países; nos estilos de vida julgados como “exóticos” ou “marginais”. Rejeitados, invisibilizados, domesticados ou policiados, esses Outros cada vez mais proliferam, bem como incrementa-se a invenção de novos Outros. A problemática da diversidade cultural desponta como tema tão central quanto transversal, na formação das consciências e das capacidades criativas que a humanidade global inadiavelmente requer.

Sinalizando caminhos para as pedagogias da diferença, Sodré assinala que “não se trata apenas de apreender o modo de existência ou a cultura de outro grupo humano, nem mesmo de somente refletir sobre as barreiras à compreensão, mas de estimular educacionalmente o que se poderia chamar de ‘imaginação empática’, ou seja, a dinâmica dos recursos afetivos que pode levar a consciência a pôr-se no lugar do Outro, a aproximar-se sensivelmente da diferença”. A construção de uma Consciência Negra capaz de afirmar tanto a sua autonomia quanto o seu pertencimento em relação ao mosaico cultural brasileiro reclama, certamente, um trabalho denso no âmbito do aperfeiçoamento das relações interculturais, trabalho que deve explorar as possibilidades abertas pelas leis 10639/03 e 11645/08 tendo em vista contribuir na produção de respostas inovadoras para as questões identitárias que entretecem o Brasil.

 


Os guarani-kaiowá e as perversidades do senso comum

Acostumados à experiência da autodeterminação, os indígenas talvez tenham uma visão do que é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais realista do que a de todos nós

Por Renzo Taddei, do Canal Ibase

(Foto Rosa Gauditano)

Nas últimas semanas recebi uma quantidade impressionante de solicitações, via redes sociais e e-mail, para manifestar meu apoio à causa dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Não me lembro, em minha experiência com redes sociais, de ter visto mobilização desse porte. Há pouco mais de uma semana, saiu decisão judicial a favor dos indígenas – ou, para colocar em termos mais precisos, revogando a reintegração de posse da área onde estão. Como atentou gente mais próxima ao movimento indígena, isso por si só não garante quase nada, apenas que violências maiores não sejam cometidas no curto prazo. De qualquer forma, não tive muito tempo para me alegrar com o que parecia uma vitória do potencial de mobilização descentralizada da sociedade civil: ao comentar a questão com um amigo, no Rio de Janeiro, recebi como resposta a pergunta, maliciosamente feita de forma a combinar ironia e seriedade em proporções iguais: “mas, afinal, para que servem os índios?” Desconcertado, não consegui articular nada, apenas retruquei: “não sei; mas e você, pra que serve?”

Não pude deixar de pensar no assunto nos dias que se seguiram. Mas, no caso, o assunto deixou de ser exatamente a situação dos Guarani Kaiowá, ou das especificidades de conflitos entre índios e não-índios, e passou a ser a situação de certa configuração de ideias do senso comum da população urbana – ou pelo menos das coletividades nas quais me insiro, no Rio de Janeiro e em São Paulo – sobre os índios, em primeira instância, e sobre aqueles que são irredutivelmente diferentes, em última. Obviamente esse é assunto complexo, e vou me limitar a apenas pontuar alguns temas que, creio, são importantes para iluminar o contexto no qual notícias sobre os conflitos envolvendo indígenas ganham significados, para a grande parcela da população brasileira que inevitavelmente participa disso tudo na posição de meros espectadores.

Sobre a natureza dos índios e não-índios

Certa vez, em uma aula de antropologia, na Escola de Comunicação da UFRJ, usei um exemplo hipotético de jovem índio que vinha à universidade estudar medicina. “Aí ele deixa de ser índio”, alguém disse. Na discussão que se seguiu, a opinião prevalecente era de que as expressões “índio urbano” e “índio médico”, usadas por mim, eram contradições em termos. Eu perguntei, então, se o fato de eu ser descendente de italianos, o que me dá, segundo a legislação italiana, o direito de “virar italiano”, faz com que eu deixe de ser alguma coisa – brasileiro, por exemplo. Confusão nas fisionomias. Por que eu posso virar italiano sem deixar de ser brasileiro, e ninguém vê problema nisso, e o índio não pode “virar” urbano sem deixar de ser índio? Concluímos – com vários autores estudiosos das populações indígenas – que, sem que as pessoas se deem conta, nós, urbanos, ocidentalóides, nos entendemos na maior parte do tempo como seres “culturais”, tendo algum controle sobre nossas identidades, portanto; enquanto isso, percebemos a essência indígena (se é que isso existe) como algo “natural”, sobre a qual eles não têm, nem podem ter, controle algum.

Nada mais natural, então, que pensar que lugar de índio é na floresta, e que índio tem que ser preservado, como se fosse parte da biodiversidade. Ou então índio deixa de ser índio e vira não-índio, arranja emprego, compra casa, toca a vida na cidade – se desnaturaliza. O problema é o índio que quer morar na cidade, ser médico, talvez, sem abandonar suas formas indígenas de entender o mundo e vida. Ou o índio que quer câmeras fotográficas, antibióticos, televisores, antenas parabólicas e escolas, mas não quer abrir mão da sua forma não-ocidental, e portanto não capitalista, de entender sua relação com a terra, por exemplo. Ou não quer abrir mão de sua forma não-ocidental, e portanto não marcada por um reducionismo materialista esvaziado e irresponsável, de relação com câmeras fotográficas, antibióticos, televisores, antenas parabólicas e escolas (é parte do senso comum que o que essas coisas são para mim são também para todos que delas fazem uso, o que não é verdade sequer para gente do mesmo grupo social). A questão se apresenta de forma pervasiva até entre gente politicamente progressista: na Cúpula dos Povos da Rio+20, uma grande amiga, ativista, me confidenciou ter ficado espantada ao ouvir de lideranças indígenas que eles gostariam de ter energia elétrica, saneamento, escolas. Eram afirmações que contrariavam suas expectativas “romanceadas”, nas suas próprias palavras, a respeito dos índios.

Por que é tão difícil aceitar a ideia de que quando o índio diz querer escola, ele não está fazendo nenhuma declaração sobre a sua identidade? Porque, dentre muitas outras coisas, identidade é paranoia de não-índio, mas não (necessariamente) paranoia de índio. Aqui começamos a chegar a algum lugar: é muito incômodo conviver com alguém que não compartilha nossas paranoias.

Uma das decorrências perversas desse estado de coisas é a forma como somos levados a ver os índios como pessoas “incompletas”, como sendo “menos” que os não-índios. Não é à toa que, juridicamente, os índios foram ao longo do século 20, até a Constituição de 1988 pelo menos, tratados como equivalentes a crianças, ou seja, como seres incapazes e que demandavam tratamento jurídico diferenciado, justamente em função dessa incapacidade. O problema estava (e está) nos códigos jurídicos, fechados à possibilidade do direito à diferença, e não nos índios, que não são mais nem menos capazes que os não-índios, mas apenas diferentes em suas capacidades. A mudança constitucional de 1988, como a própria questão dos Guarani Kaiowá demostra, ocorreu infelizmente muito mais de juris do que de fato.

Os muitos significados do verbo servir

Mas voltemos à questão sobre a “serventia” dos índios. O tema apareceu novamente em reportagem da revista Veja, edição de 4 de novembro. Replicando argumentos usados em edições anteriores ao tratar do tema, o texto (que de jornalístico não tem quase nada) mescla desinformação e preconceito, ao fazer uso, por exemplo, de argumentos como a suposta “trágica situação [dos índios] de silvícolas em um mundo tecnológico e industrial”, de afirmações como “[a] Funai também apoia o expansionismo selvagem”, e de acusações descabidas, como a de que os antropólogos ligados ao Conselho Indigenista Missionário querem transformar o sul do Mato Grosso do Sul numa “grande nação guarani”, justamente na “zona mais produtiva do agronegócio” do estado. Em 2010, a revista havia afirmado, através de um malabarismo estatístico de quinta categoria (digno de envergonhar até ruralistas medianamente sofisticados), que 90% do território brasileiro é ocupado ou destinado a áreas de preservação ambiental, comunidades indígenas, quilombolas e áreas de reforma agrária; “a agricultura e demais atividades econômicas terão apenas 8% de área para se desenvolver”. Enfim, a estratégia retórica é clara: quem não contribui com o agronegócio e demais formas de produção capitalista em grande escala – no caso, os índios e todos os demais grupos de alguma forma ligados a usos não predatórios da terra – não contribui com a economia nacional. Em uma palavra: só serve para atrapalhar.

Essa é uma questão, me parece, fundamental: é preciso discutir o conceito de serventia. Como a ideia de “servir” participa em nossas vidas, e na forma como aprendemos a entender e viver o mundo? Se a serventia dos que (supostamente) não estão integrados ao projeto da nação é um tema relevante – tanto ao pseudo-jornalismo da Veja como a certo senso comum urbano -, e nós, não-índios, (supostamente) integrados, afinal, servimos pra quê? E como isso afeta nossa compreensão das questões indígenas no Brasil contemporâneo, e mais especialmente o caso dos Guarani Kaiowá? Na minha opinião, isso tudo serve de pano de fundo contra o qual as audiências urbanas, dos grandes canais de mídia, distantes do Mato Grosso do Sul, atribuem sentido às notícias.

O caso dos Guarani Kaiowá traz à luz um elemento da vida cotidiana brasileira que é feito estrategicamente invisível na forma como somos ensinados a entender o mundo. Eles não querem ser “como nós”; tenho a impressão de que para a maioria da população urbana isso não apenas é contra intuitivo, mas figura como um choque, quase como uma afronta. Se eles gostam de fotografia, eletricidade, escolas e antibióticos, qual o problema, então?

Há uma diferença fundamental entre a experiência de mundo dos índios e dos não-índios brasileiros, e isso está ligado ao “lugar” onde se encontram as coisas verdadeiramente importantes. De acordo com trabalhos antropológicos que descrevem as visões de mundo e formas de vida de várias etnias indígenas sul-americanas, uma das características marcantes da vida indígena (para quem não é índio, obviamente), é a proximidade existencial das pessoas com os níveis mais altos da existência política e religiosa das suas sociedades. O poder político, em geral, não é algo que se manifeste em forma de hierarquias verticais, da forma como as entendemos, e provavelmente está ocupado por alguém com quem as pessoas da tribo tem relação pessoal direta, muitas vezes de parentesco. O mesmo se dá no que diz respeito à existência espiritual: está tudo logo ali, divindades, antepassados, espíritos, mediados pelas práticas do xamã, que também é conhecido de todos (ainda que, igualmente, talvez temido por todos). Há a percepção de que as coisas do mundo, alegrias e tristezas, sucessos e fracassos, são intrinsecamente ligadas à existência das pessoas da comunidade – os antropólogos chamam isso de relação de imanência.

O que é que a “integração” ao Brasil oferece, em contrapartida? Fundamentalmente, o deslocamento do centro de gravidade da existência para algum outro lugar, mais distante, abstrato, de difícil compreensão. Os índios resistem à ideia de que o centro do mundo passe a residir em outro lugar – em Brasília, por exemplo. Ou seja, resistem ao processo que os faz marginais. A marginalização, tomando a expressão de forma conceitual (ou seja, fazendo referência a quem está nas margens, nas bordas ou periferia), pode se dar deslocando-se alguém para a periferia do mundo, ou deslocando o centro de lugar, de modo que quem era central passa a ser periférico, e, portanto, marginal. De certa forma é exatamente isso que o Brasil oferece aos indígenas. Mas quem é que quer ser marginal?

O que a imensa maioria de nós, urbanitas ocidentalóides, não percebemos é que é isso, exatamente, que o Estado faz conosco. Assistimos à política e às outras formas de organização do nosso mundo – justiça, administração pública, economia – na qualidade de espectadores. Irritados, confusos, insatisfeitos, mas quintessencialmente espectadores. Somos mais capazes de interagir com um reality show do que com o mundo da política. Desde pequenos somos ensinados – e as políticas educacionais e conteúdos programáticos são desenhados cuidadosamente para tanto – que as coisas realmente importantes acontecem em algum outro lugar, e que são muito complexas, e que por isso mesmo há alguém mais capacitado cuidando disso tudo, para que possamos viver nossas vidas em paz. Ou seja, para que possamos não pensar em nada que não seja nos mantermos vivos e sermos economicamente ativos – e assim contribuir com o “projeto da nação”. Ou seja, o Estado reduz nossa vida ao mínimo – pão e circo, bolsa família e telenovela – para que as coisas funcionem e efetivamente aconteçam em algum outro lugar. Somos espectros de cidadãos.

Ou seja, a pergunta sobre para que servem as pessoas deve ser recolocada em outros termos: do que é que cada um de nós abre mão para “participar” do Brasil? Nós servimos para servir ao Estado. Somos todos marginais, e não nos damos conta disso.

O escândalo da questão indígena é a resistência que eles têm em aceitar os nossos mitos, ou as nossas ilusões – sobre o Brasil, por exemplo. Acostumados à experiência da autodeterminação, eles talvez tenham uma visão do que é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais realista do que a de todos nós.

O Estado brasileiro só vai ser capaz de avançar na questão dos conflitos indígenas quando parar de tratar o tema da autodeterminação como anátema. E só o fará quando deixar de ter na tutela dos seus súditos sua razão de ser – ou seja, quando as elites políticas abandonarem a visão que tem de que o Brasil é fundamentalmente habitado por gente desqualificada, intelectualmente e moralmente inferior, e mal intencionada, e que demanda, portanto, o esforço do Estado para corrigir desvios e induzir a massa ao caminho produtivo. O Estado brasileiro é incapaz de reconhecer valor nas diferenças, justamente porque a homogeneização coletiva é condição de existência do próprio Estado. Frequentemente é evocada a noção de atentado à soberania nacional quando o tema das diferenças é trazido ao centro da arena.

E se um bocado de gente decide – muito arrazoadamente, por sinal – que a economia não deve mais crescer? Isso, dirão muitos, é obviamente um atentado à soberania nacional. Ou não? É, antes que tudo, e talvez apenas, um atentado à soberania do soberano. Pelo menos da tecnocrática soberana da ocasião.

Manifestemo-nos hoje, enfaticamente, em defesa dos Guarani Kaiowá. Como forma de materializar nosso apreço pela liberdade e pelo direito à diferença. Como forma de protesto contra um Estado centralizador e autoritário. Como declaração de que não queremos juiz, médico, político ou professor nos dizendo como devemos viver nossas vidas. Essa função está reservada para os poetas – índios e não-índios, brancos e não-brancos.

Renzo Taddei é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova York. Dedica-se aos estudos sociais da ciência e tecnologia.

FONTE: Revista Fórum