MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
COLINA, Paulo. Axé: antologia contemporânea da poesia negra brasileira. São Paulo: Global, 1982.
NEGRO FORRO
[Adão Ventura]
minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.
***
SOU
[Oliveira Silveira]
Sou a palavra cacimba
pra sede de todo mundo
e tenho assim minha alma:
água limpa e céu no fundo.
Já fui remo, fui enxada
e pedra de construção;
trilho de estrada-de-ferro,
lavoura, semente, grão.
Já fui a palavra canga,
sou hoje a palavra basta.
E vou refugando a manga
num atropelo de aspa.
Meu canto é faca de charque
voltada contra o feitor,
dizendo que minha carne
não é de nenhum senhor.
Sou o samba das escolas
em todos os carnavais.
Sou o samba da cidade
e lá dos confins rurais.
Sou quicumbi e moçambique
no compasso do tambor.
Sou um toque de batuque
em casa gege-nagô.
Sou a bombacha de santo,
sou o churrasco de Ogum.
Entre os filhos desta terra
naturalmente sou um.
Sou o trabalho e a luta,
suor e sangue de quem
nas entranhas desta terra
nutre raízes também.
***
REFLEXÃO
[Abelardo Rodrigues]
O poema reflete
principalmente no escuro
E quando reflete, insone,
apetrecha o movimento
da luz.
Não a luz que nasce
a cada dia
em qualquer poente.
Não a luz feita
sob o canhão e o crucifixo
Não a luz dos seis dias…
mas aquela
de Totens
de Olorum.
VAGA-LUME
[Abelardo Rodrigues]
A noite
— pálida Noite —
são nossos traços
negando fogo.
São gritos de arcanjos
descabelados
violados por Orixás.
Ah Noite!
trago-te oferendas
de palavras
das quais se cantará a vida
dos tombadilhos de América.
***
NEGRITUDE
[Geni Guimarães]
Ouço o eco gemendo,
Os gritos de dor,
Dos navios negreiros.
Ouço o meu irmão,
Agonizando a fala,
Lamentando a carne
Pisada,
Massacrada,
Corrompida.
Sinto a dor humilhante,
Do pudor sequestrado,
Do brio sem arbítrio,
Ao longe atirado,
Morto e engavetado,
Na distância do tempo.
Dói-me a dor do negro,
Nas patas do cavalo,
Dói-me a dor dos cavalos.
Arde-me o sexo ultrajado
Da negra cativa,
Usada no tronco,
Quebrada e inservida,
Sem prazer de sentir,
Sem desejos de vida,
Sem sorrisos de amor,
Sem carícias sentidas,
Nos seus catorze anos de terra.
Dói-me o feto imposto ao negro útero virgem.
Dói-me a falta de registro,
do negro nunca visto
Além das senzalas,
No comer no cocho,
No comer do nada.
Sangra-me o corte na pele,
Em abertas feridas,
De dores doídas,
No estalo da chibata.
Dói-me o nu do negrinho
Indefeso escravozinho,
Sem saber de razões.
Dói-me o olho esbugalhado,
No rosto suado,
No medo cravado,
No peito do menino.
Dói-me tudo e sobre tudo,
O imporque do fato.
Meus pêsames sinceros à mentira
multicolor da princesa Isabel.
Mas contudo,
Além de tudo
E muito mais por tudo,
Restou-me invulnerável,
Um imutável bem:
Ultrajadas as raízes,
Negados os direitos,
Ninguém roubou-me o lacre da pele.
Nenhum senhor. Ninguém!
***
SANTOS, Luiz Carlos; GALAS, Maria; TAVARES, Ulisses. Antologia da poesia negra brasileira: o negro em versos. São Paulo: Salamandra, 2005.
OFERENDA
[Oswaldo de Camargo]
Que farei do meu reino: um terreno
no peito
onde pensei pôr minh’África,
a dos meus avós, a do meu povo de lá e que me deixam
tão sozinho?
Como sonhei falar minha mamãe África,
oferecer-lhe, em meu peito, nesta noite turva,
os meus pertences de vento, sombra e relembrança,
o meu nascimento, a minha
história e o meu tropeço
que ela não sabe, nem viu e eu sendo filho dela!
— Oh, mamãe, as minhas fraldas estão sujas de brancor
e ele cheira tanto!
Às vezes penso, em minha solidão, na noite turva,
que você me está me chamando com o tambor do vento.
Abro a janela, olho a cidade, as luzes me trepidam
e eu perco o condão de te achar
entre estes odores vários
e tanta dor de gente branca, preta, variada
gama e tessitura de almas, ânsias, medo!
Como sonhei falar, sozinho, à minha mamãe África,
e oferecer-lhe, em meu peito, nesta noite turva,
os meus presentes de vento, sombra e relembrança,
o meu nascimento, a minha história, o meu tropeço
que ela não sabe, nem viu e eu sendo filho dela!
***
ENCONTREI MINHAS ORIGENS
[Oliveira Silveira]
Encontrei minhas origens
em velhos arquivos
livros
encontrei
em malditos objetos
troncos e grilhetas
encontrei minhas origens
no leste
no mar em imundos tumbeiros
encontrei
em doces palavras
cantos
em furiosos tambores
ritos
encontrei minhas origens
na cor de minha pele
nos lanhos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei
***
INTEGRIDADE
[Geni Mariano Guimarães]
Ser negra,
Na integridade
Calma e morna dos dias.
Ser negra,
De carapinhas,
De dorso brilhante,
De pés soltos nos caminhos.
Ser negra,
De negras mãos,
De negras mamas,
De negra alma.
Ser negra,
Nos traços,
Nos passos,
Na sensibilidade negra.
Ser negra,
Do verso e reverso,
Do choro e riso,
De verdades e mentiras,
Como todos os seres que habitam a terra.
Negra
Puro afro sangue negro,
Saindo aos jorros
Por todos os poros.
***
PONTO HISTÓRICO
[Éle Semog]
Não é que eu
seja racista…
Mas existem certas
coisas
que só os NEGROS
entendem.
Existe um tipo de amor
que só os NEGROS
possuem,
existe uma marca no
peito
que só nos NEGROS
se vê,
existe um sol
cansativo
que só os NEGROS
resistem.
Não é que eu
seja racista…
Mas existe uma
história
que só os NEGROS
sabem contar
… que poucos podem
entender.
***
DESLIMITES 10
[Salgado Maranhão]
(táxi blues)
eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
— eu sou a luta.
O que há sido entregue aos urubus,
e de blues
em
blues
endominga as quartas-feiras
— eu sou a luz
sob a sujeira.
(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)
eu sou ferro, eu sou a forra.
E fogo milenar desta caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco às estrelas.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
leito de terra negra
sob a água branca,
sou a lança
a arca do destino sobre os búzios.
e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
eu sou a luz em seu rito de sombras
— esse intocável brilho
***
EBULIÇÃO DA ESCRAVATURA
[Luís Carlos de Oliveira]
A área de serviço é senzala moderna,
Tem preta eclética, que sabe ler “start”;
“Playground” era o terreiro a varrer.
Navio negreiro assemelha-se ao ônibus cheio,
Pelo cheiro vai assim até o fim-de-linha;
Não entra no novo quilombo da favela.
Capitão-do-mato virou cabo de polícia,
Seu cavalo tem giroflex (radiopatrulha).
“Os ferros”, inoxidáveis algemas.
Ração poder ser o salário-mímino,
Alforria só com a aposenadoria
(Lei dos sexagenários).
“Sinhô” hoje é empresário,
A casa-grande verticalizou-se,
O pilão está computadorizado.
Na última página são “flagrados” (foto digital)
Em cuecas, segurando a bolsa e a automática:
Matinal pelourinho.
A princesa Áurea canta,
Pastoreia suas flores.
O rei faz viaduto com seu codinome.
— Quantos negros? Quanto furor?
Tantos tambores… tantas cores…
O que comparar com cada batida no tambor?
________
“A escravatura não foi abolida; foi distribuída
entre os pobres”.
***
GENEGRO
[Miriam Alves]
Gemido de negro
Não é poema
é revolta
é xingamento
É abismar-se
Gemido de negro
é pedrada na fronte de quem espia e ri
É pau de guatambu no lombo de quem mandou
dar
Gemido de negro
é acampamento de sem-terra no cerrado
É punho que se fecha em black power
Gemido de negro
é insulto
é palavrão ecoado na senzala
É o motim a morte do capitão
Gemido de negro
é a (re)volta da nau para o Nilo
Gemido de negro…
Quem tá gemendo?
TOQUE DE REUNIR
Vinde irmãos macumbeiros
Espíritas, Católicos, Ateus.
Vinde todos os brasileiros.
Para a grande reunião.
Para combater a fome
Que mata nossa nação.
Vinde Maria Pucheria.
João de Deus. José Maria.
Anicacio. Zé Pretinho
Para a grande reunião
Para combater a malária
Que mata nossa nação
Vinde trapeiro, pedreiro.
Lavrador, arrumadeira.
Caixeiro, funcionário.
Combater a tuberculose
Que mata nossa nação.
Vinde irmãos sambistas.
Da favela. Da Mangueira.
Do Salgueiro. Estácio de Sá.
Para a grande reunião.
Combater o analfabetismo
Que mata a nossa nação.
Vinde poetas, pintores
Engenheiros, escritores.
Negociantes e médicos.
Para a grande reunião.
Combater o facismo
Que mata a nossa nação.
***
SOU NEGRO
À Dione Silva
Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongôs e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou
Na minh`alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação
***
O CANTO DA LIBERDADE
Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos…
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes…
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais…
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos
***
VELHO ATABAQUE
Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher…
Triste maracatu
escravo vestido de rei
loanda distante do corpo
e pertinho da alma
negras sem desodorante
com cheiro gostoso
de mulher africana
zabumba batucando
na alma de eu…
Velho atabaque
madeira de lei
couro de animais
mãos negras lhe batem
e o seu choro é música
e com sua música
dançam os homens
inspirados de luxúria
e procriação
Velho atabaque
gerador de humanidade…
***
BAIANINHA
Baianinha
vatapá permanente
doce de coco
cafuné dendê
você veio na hora
quentinha
pra minha vida
trazendo o dengo
do que eu precisava.
Candomblé da minha madrugada
batendo em mim
que sou tambor creoulo
com patuá
envolvendo meu pescoço
com patuá
envolvendo meu pescoço
botando em minha boca
feitiço de Iansã.
Você veio agora
como a revolução de Cuba
me animar a vida
Você veio agora
como a libertação do Congo
me tocando pra frente
e fazendo esquecer
o tempo
e a velhice.
Você veio agora
fazer mutirão comigo…
***
MACUMBA
Noite de Yemanjá
negro come acaçá
noite de Yemanjá
filha de Nanan
negro come acaçá
veste seu branco abebé
Toca o aguê
o caxixi
o agogô
o engona
o gã
o ilu
o lê
o roncó
o rum
o rumpi
Negro pula
negro dança
negro bebe
negro canta
negro vadia
noite e dia
sem parar
pro corpo de Yemanjá
pros cabelos de Obá
do Calunga
do mar
Cambondo sua
mas não cansa
cambondo geme
mas não chora
cambondo toca
até o dia amanhecer
Mulata cai no santo
corpo fica belo
mulata cai no santo
seus peitos ficam bonitos
Eu fico com vontade de amar…
***
DEFORMAÇÃO
Procurei no terreiro
Os Santos D’África
E não encontrei,
Só vi santos brancos
Me admirei…
Que fizeste dos teus santos
Dos teus santos pretinhos?
Ao negro perguntei.
Ele me respondeu:
Meus pretinhos se acabaram,
Agora,
Oxum, Yemanjá, Ogum,
É São Jorge,
São João,
E Nossa Senhora da Conceição.
Basta Negro!
Basta de deformação!
***
REENCARNAÇÃO
Eu nasci
No inicio do século
(Revolução operária)
Nasci no Bairro de São José
Recife Pernambuco Brasil
D. Micaela
Foi a parteira que me pegou
E anunciou o meu Sexo
Homem!
A minha mãe
Foi operária cigarreira
Da Fábrica Caxias
Nascida de índio
E africano
Meu pai
Foi sapateiro
Especialista em Luis XV
Nasceu de branco e africano
Sabia falar em nagô
Meu pai era preto
Minha mãe era preta
Todos em casa são pretos
Minha mãe não sabia ler
E meu pai era semianalfabetizado
Minha mãe sabia rezar
Meu pai sabia rezar
Meu pai depois foi macumbeiro
(Macumbeiro é um espírita de cor preta)
Branco espírita é espiritualista
Que fica esperando a reencarnação
Na luta por nada
Não quer revolução
Nem por evolução
Não quer ação
Quer reencarnar
Na outra vida
Quer reencarnar diferente
Se for mulher
Quer voltar homem
Se for homem
Quer voltar mulher
Se for empregado
Quer voltar patrão
Quer reencarnar
Para se acomodar…
Intelectual se acomoda sem reencarnar
É mais fácil
Depende do emprego que arranjar…
***
TRISTES MARACATUS
Baticuns maracatucando
na minh’alma de moleque
Buneca negra na minha meninice
de “negro preto” de São José
Nas águas de calunga
a Kambinda me inspirando amor
O primeiro cafuné no mato verde
Da campina do Bodé
Rum de amor de negra
Rumpi de desejo de mulata
Lê de realização cafusa
Sons de protestos
Num mundo de guerra
E de ódio
Criação de Olorum
O mais tolerante dos deuses
O mais pacífico
Dos criadores
O mais estético
Dos chefes de raça
Tristes maracatus
Em maracatus alegres
Que se vão distantes
Em ritmo calmo de congo
Em acelerado moçambique
Em toque de Kêto
De Jejê e de Angola
Maracatus meus…
***
MANDINGA
Isto é mandinga negra
Isto é mandinga
Teus olhos de mãe d’água
pregando lirismo
teus seios escondidos
em Vila Isabel
Teus lábios mestiços
falando em beleza
no ritmo do samba
nos pingos da chuva
que molham o meu rosto
lirismo + lirismo
= a lirismo
(vamos somar na poesia)
é preciso aumentar a poesia
é preciso crescer e multiplicar
poeticamente
***
RAINHA E ESCRAVAS
Da janela do apartamento
vejo só barracos do morro
onde moram as rainhas
do carnaval
imponentes rainhas negras
riquíssimas de ritmo e de sexo
Rainhas por três dias alegres
escravas no resto do ano…
***
CANTO DOS PALMARES
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!
Há batidos fortes
de bombos e atabaques
em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos…
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias!
Fecham minha boca
Mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
Minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos
Do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos,
até pelo rio.
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar
e manejar arcos;
muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas para amar
seus ventres crescem
e nascem novos seres.
O opressor convoca novas forças
vem de novo
ao meu acampamento…
Nova luta.
As palmeiras
ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos,
matam as minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isso,
para salvar
a civilização
e a fé…
Nosso sono é tranquilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravismo é o seu sonho
os inconscientes
entram para seu exército…
Nossas plantações
estão floridas,
nossas crianças
brincam à luz da lua,
nossos homens
batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam
essa música…
O opressor se dirige
a nossos campos,
seus soldados
cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr…
Ainda sou poeta
meu poema
levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores
não são mais pacíficos,
até as palmeiras
têm amor à liberdade…
Os civilizados têm armas,
e têm dinheiro,
mas eu os faço correr…
Meu poema
é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas
cantam comigo,
enquanto os homens
vigiam a Terra.
O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta
com outros inconscientes,
com armas
e dinheiro,
mas eu os faço correr…
O meu poema libertador
é cantado por todos,
até pelas crianças
e pelo rio.
Meu poema é simples,
como a própria vida,
nascem flores
nas covas de meus mortos
e as mulheres
se enfeitam com elas
e fazem perfume
com sua essência…
Meus canaviais
ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças
lambuzam os seus rostos
e seus vestidos
feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais
que nós plantamos.
Não queremos o ouro
porque temos a vida!
e o tempo passa,
sem número e calendário…
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para
prender-me novamente…
— É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor…
Eu ainda sou poeta
e canto nas selvas
a grandeza da civilização — a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos
batem com as mãos,
acompanhando o ritmo
da minha voz….
— É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor…
Eu ainda sou poeta
e canto nas matas
a grandeza da fé — a Liberdade…
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos
batem com as mãos,
acompanhando o ritmo
da minha voz….
Saravá! Saravá!
Repete-se o canto
do livramento,
já ninguém segura
os meus braços…
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm ter comigo,
eu trabalho,
eu planto,
eu construo
meus irmãos vêm ter comigo…
Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos
sublimam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos,
podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor
dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem…
E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos
as tochas acesas,
é a civilização sanguinária
que se aproxima.
Mas não mataram
meu poema.
Mais forte que todas as forças
é a Liberdade…
O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema
é cantado através dos séculos,
minha musa
esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido…
***
CONGO
Pingo de chuva,
Que pinga,
Que pinga,
Pinga de leve
No meu coração.
Pingo de chuva
Tu lembras a canção,
Que um preto cansado,
Cantou para mim,
Pingo de chuva,
A canção é assim.
Congo meu congo
Aonde nasci
Jamais voltarei
Disto bem sei
Congo meu congo
Aonde nasci…
***
NAVIO NEGREIRO
Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar…
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana…
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia…
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência…
***
NEGROS
Negros que escravizam
E vendem negros na África
Não são meus irmãos
Negros senhores na América
A serviço do capital
Não são meus irmãos
Negros opressores
Em qualquer parte do mundo
Não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
Escravizados
Em luta por liberdade
São meus irmãos
Para estes tenho um poema
Grande como o Nilo
RANHURAS
Não há direção
no labirinto.
A vida e sua cárie
são exatas, no entanto.
Da outra margem
exploram o espelho
e me contam
o que permanece,
se me modifico.
Entro nessa direção
sem roteiros.
O que aí se mostra
são mapas
de outros mapas.
***
NUMA PAISAGEM, OUTRA
o unguento e, às vezes,
a colônia de morte,
sangram através do pensamento, lâmina
que toca a jugular
se animal em pelo, se apenas
recipiente,
quem saberá? enquanto se esgueiram
refazem os modos de si
alguém que os interpreta
há muito não goza de confiança
por isso, os gritos
com que intenta mover as pedras
quem contesta o descendente
e as razões
que o fazem irmão da gazela
inimigo da febre?
não seremos nós, os que portam
a camisa sem idiomas,
nem as mulheres
a quem reservam o teto da casa
e nenhuma epígrafe
a contestação faz-se por si mesma
a jugular não se entrega ao braço
que desfere o golpe
e se esgota nesse gesto
não, o sacrifício não está no mel
que incendeia, de tempos em tempos,
a viagem dos parentes
as ondas que mudam por si mesmas
disseram adeus às certezas,
nós ainda não
(pelo menos aqueles que se julgam
primo dos primeiros)
como nos enfrentaremos sob a ordem
que tropeça?
mil sendas se abrem e a seiva do pai,
como o recém-nascido,
se perdeu num corpo maior
ninguém está lá, a não ser
quem te conhece e estranha, não
o charme de irmão,
não espere entendimento se ele fizer
um círculo na areia
não há cortes que expliquem
a paisagem anterior, nem a sombra, amanhã,
nos caules
o que se espraia da jugular
é um labirinto que conduz a outro e se algum
vestígio resta
é para dizer seu afastamento da origem
as leituras faliram
se o descendente insiste,
rasga os seres para os quais não temos
saúde
nesse deserto de alegrias, a herança
é o animal que saqueia o verbo
antes do sacrifício
***
CEMITÉRIO MARINHO
CENA 1
: embarcados, como
avaliar a tempestade
não é fora que a lâmina
arruína, mas
nas veias
o grito (lagarto que
os dias emagrecem)
insulta a diversão
do escorbuto
onde uma perna
outra
lista de mercadorias
que valessem
peça
por
peça
nesse cômodo
mal se tira a costela
e a morte instala sua
força tarefa
no vermelho da hora
um baque
outro
espanto, deveras
o corpo
— o que expõe em mulher
ou guelra
exasperado?
: embarcados, às vezes
nos desembarcam
antes da ilha, em meio
às ondas
como sacos de aniagem
entregues ao calunga
grande, o que resta?
uma
cilada, outro revés?
à
superfície um brigue
é
o
que
é
faca alisando a bandeira
do mar país
sem continente
garden of the world
mas
o
que
ele
arrota
assombra-nos
: na praia, desembarcados
teremos de volta
as pernas os braços
a cabeça
os rios
os crimes
a ira
os lapsos
as línguas
a guerra
a teia
o horror
a trégua
o camaleão
no céu
a tempestade?
CENA 2
uma ponte de ossos
submersa
eis o que somos —
além abismo a sigla
em gesso
se esculpe e nela
habitam, sob musgo,
la vieja le bleu
o atirado aos tubarões
que,
devido à calmaria,
flutuou com a barriga
em luto
por meia hora
o rosto
perto do navio dentro
dos rostos em fuga
o rosto
esverdeado como um
fruto-memória
um braço
estendido além
de seus nervos
eis o que somos — apesar
do abismo e sua colônia
de entalhes
apesar do abismo onde
a forma informe (a
linguagem)
nos experimenta
CENA 3
um velho repõe a cólera
não pela intenção
de roubar o sono aos peixes
ou porque uma raia
crispou o coral e sua memória
se esgarçou
— os tendões, uma
vez descolados, acusam
a história
entre essa e a outra
margem do oceano, cabeças
rolaram mas
continuam presas à orelha
dos livros
se um velho pretende dizer
quem as perdeu
deve se postar na beira
o mar à sua frente
sem nada a recuperar, senão
o exílio
CENA 4
o ventre materno
nave
se atreve nas ondas
não porque os filhos
o pensem umbigo
fora
do alvo
o ventre erra
na tempestade, embora
costure os portos
da noite
o que leva dentro
se move
mais que a nuvem
& o comércio
sobre as águas
esse navio
norte de outro norte
mas
traído, o ventre
se inventa
presídio-liberdade
a cabeça (quem
a tiver gire
além do próprio
eixo)
é o bólido
o que somos
vem de um
enigma
tirado aos peixes
de um corpo
além
das chagas
o ventre materno
nave
esgrime na água
e o que esculpe
excede
ao seu trabalho
: na pele
nenhum risco
que tire desse
corpo o equilíbrio
o ventre materno
diário
rasura a inscrição
de si mesmo
na água em que
submerge
ressoa, estala
se ergue
— a ele, por isso
saúdam as cabeças
CENA 5
a linguagem espolia o museu
de história natural
nem tudo o que ressoa
é som
a palavra ainda menos
se a diamba espuma
a noite
não é que o morto viajará
o pássaro limpa
os dentes do hipopótamo
nem por isso
vão juntos à reza
a grande árvore freme
mas não é
com a chuva que se deita
a linguagem se joga
no oceano — para desespero
da memória
que se quer museu de tudo
CENA 6
a primeira loja (de carnes:
termo usual
para quem perdera
o domínio
de sua violência)
imitava o inferno
em curvas: trezentos
nascidos para morrer
acenando em azul
e branco
ao país das demências
trezentos entre os seis
e treze
anos apartados do jogo
: uns meninos
outros, meninas
em fila sob trinta e três
graus
no inferno, o azul
o branco, trezentas vezes
lesado,
se esgueira do assédio
de sua fila, cada
um respira no olvido
trezentos zeros a trinta
e três graus
crepitam na grama: extinto
o negócio,
não se bastam, em flor
em farpa oxidam
CENA 7
recusado, esse
lugar
é o soldo que reduziu
o mar a duas braças
em 110 metros
quadrados
redondos em febre
e assombro
dormem (não como
deveriam)
seis mil cento e dezenove
almas
: as pupilas golpeadas
no mar cevam
um dia
que não se esgota
de óbito em óbito
o horror assunta os vivos
corta-lhes
herança e umbigo
de óbito em óbito
os sem irmandade ou
crédito
se escrevem à esquerda
de óbito em óbito
navio e continente são
um
mesmo ancoradouro
de óbito em óbito
se calcula a história como
se ao apagá-la
ela se fizesse nova
nesse lugar
de esconjuros a juros
a nudez acossa
o oficial de ossos
a linguagem, corpo
indefeso, cola-se à laje
suas entranhas são
um caniço
e ainda que o silêncio
a ancore suona
: os que morreram antes
de se tornarem
outros foram lançados
a essa barca noturna
sem nome
tirados ao sangue
não pertencem ao hades
olimpo
de nenhuma ordem
são outros além-outros
que engolem a língua
para regressar
à primeira queda
do rio
que temem perder
a cabeça
e sem ela o rastro anterior
ao chão
esse
lugar recusado
invernou sob arcas
e contrapesos
sob alucinações
e mercadorias alheias
ao seu comércio
sobre tal
cemitério
se atulharam
o descuido letras de câmbio
e tumultos
o que fazer, porém
dos espólios
recuperados no golpe
de uma pá?
são os aptos
no manuseio da
equipagem: os mortos
de quem o navio
não partiu, os mortos
tatuados
na cal, os de sempre
que teriam
movido arcos e tinas
comprado & vendido
suas posses
e a si mesmos
os mortos descalços, os
emudecidos
os surdos a qualquer
sentinela
lá vem a barra do dia
topar co’as ondas
do mar
os vermelhos e suas
orquídeas
saídas no flanco
esquerdo
sua terra é diferente
vá m
orar no campo santo
os mortos que não
viram a cidade
as lianas
mortas, as mortas
lá vem a barra do dia
sem as ondas do mar
de vigo
o que fazer desses
rendidos
na praia, de suas
valises
com nada por dentro?
de seu esqueleto
convertido em
flauta lá vem a barra
do dia topar co’as ondas
do mar de sua
cólera enrugando
a manhã?
***
CADERNO DE RETORNO
Pele radar que indexa
um looping
ao atabaque
um anjo
à sua queda
Iracema
à sua novela
alvo que incinera um atirador
no teto
(…)
Para uso irrestrito a pele em desafio
a todo gesto
coleção de selos que o vento
dispersa da janela
(…)
A pele procura os naipes para
entrar no jogo
mais se arroja quando desnuda
o homem
através do verbo
(…)
Pele não é o cárcere nem
o texto
o papel
a retícula
para roteiro em zoom
quiçá um mapa que muda enquanto viaja
e se fixa quando
escorregadia
nos tece
(…)
Estou de volta a casa não para visitar
os carneiros da minha gente
uma vez mortos
expostos.
O que espero deles não é carne
mas raiz e errância.
A experiência acumulada sendo
o último da classe
o único entre os outros
o suspeito número um
a prova no fundo do poço
apodreceu para adubar minha vontade.
(…)
Como cerzir um país com linhas várias
onde uma se quebra
outra a emenda
e por não se amarem se enovelam
orquídeas na mesma escarpa.
A voz arranha a pintura do carro,
reabre no dia uma herança de embargos.
O que está dito é ditado?
Não temos guerra, nem terremoto
nem ebola, ruína ou atentado
não temos cisma nem avalanche
o que vemos se não é alegria
são seus disfarces
E os ouvidos, que letrados noutra música,
se escalavram?
Tenho uma laranja nas mãos a faca
para salvar os gomos desvia
das partes cariadas.
A palavra descasca o país: num ermo botequim,
entre bacon e varejeiras, a pele de um conta
o que ele por sua boca não tramaria.
Miríades fábulas que importa?
Sua sombra que a fraca luz projeta recusa
a rede da casa-grande
o título a prazo do barão em débito
a cadeira del-rey
a merda da casa-grande
a dissertação elogiosa da selva
o piano
a culpa de não amar o deus imposto
(…)
Discutimos sobre fresas grandes y pequeñas
et on dita u même temps que ce sont originales
lês traces de notre nouvel artiste:
— est-il um naïf?
O abismo do país se ilumina,
acelera minha ferida.
o que em mim celebra
cospe esculpe alucina.
A vergonha de quem não inventou a pólvora
virou bandeira de quem calçou o continente.
A voz não procura esse rastro
procura o sentido além daquel esperdiçado
porque não as inventamos
teimamos em aferir
a roda
a pólvora
a palavra
Contra a blitz na memória
a Memória.
Contra o desprezo ao que dançamos
a Dança.
Contra o repúdio ao que falamos
a Fala.
Nos fundos do país a festa não termina
será uma para disfarçar outra guerrilha?
Quem a percorre
desde a sala
pensa nos esqueletos
que trepidam sobre outros emudecidos.
São nove horas da noite em 1844
os presos assustam a Câmara
e os coletes da cidade de Salvador.
No subsolo da lei a insubmissão
deborda em sambas de crioulos
ou africanos?
Serão idênticos ou mais diversos
quando se ajuntam?
(…)
É possível amar onde o desembarque de escravos
se multiplicou como as moscas
sobre as bananas?
Qué pretendes quando olvidas esta memoria
la continuación del massacre?
cette odeur de cheveux au feu?
a fome como sintaxe?
A voz escassa raspa as unhas no caos.
Aquele de quem a bala não se enamorou,
vai seguro e não se espanta.
Passeia a orla, tênis e bicicleta
artefatos que sedam os calos.
Vai como se, por dentro, a luta
entre capitão do mato e escravo
tivesse cessado. Vai ao ar livre
contra a vigilância da morte.
O tênis brando, roupa de marca
documentos de exorcismo diário.
Vai discreto e não balança,
pedra alguma lhe tira o passo.
Até que, desde dentro, a luta
explode em seu encalço. Ia de
tênis bicicleta, por que o abraçou
a bala do itinerário desviada?
(…)
Ó como somos plásticos
para olhar de esguelha
e entender os mitos.
Mais uma série de ensaios
explica — o país era outro mas, iludidos,
deitamos gatos para acordar lebres.
Ante as versões
de spix, martius & company
atenção, repare, escute
a pulga atrás da orelha.
Como soou o país tocado pelas mil duzentas
e setenta e três línguas indígenas
antes que minasse
a nuvem, o vento, a tempestade?
Como o recitam as cento e oitenta
exiladas do dicionário?
E as africanas que negociaram
em senzalas e praças?
E o português se arvorando
em camaleão nos trópicos?
(…)
No país onde quem cala consente,
grassa outra tecelagem
não gira humores
não lubrifica sirenes
hora extra não faz
Tece sem novelo a rede para as aves de rapina
não se dá um medo
se ama de filhos.
Como um bordado, retém o pano de quem
pensa dominar o desenho.
Tenho doze fôlegos e uma educação
para constranger os desavisados.
O que assisti ao entrar pelos fundos
da cidade não me calcinou as retinas
ao contrário
encheu de impertinência os meus escritos.
Os que fendem a pedra
me ensinaram o avesso
os papéis roídos
a trituração por método
o pai me instruiu que é por dentro
a ebulição da lava.
O país tem fendas grutas corredores
uma vocação para morder
que estremeceu Hans Staden
mordemos a cauda e a cabeça
deglutimos sem mastigar
engolimos o sapo
salivamos marimbondo
Sabemos que deus alarga a goela
quando tira os dentes.
Não cuspimos no fogo para não
minguar a crista.
Morremos pela boca, exceto Exu,
guia de Tirésias
que desacata Gregório de Matos
Macunaíma e François Villon.
Exu calibã
luva insuspeita de Shakespeare
caçador que tem em si a caça
e se irrita
preso a uma dezena de nomes.
(…)
A notícia desse espanto estilhaça ao meu lado
por que me enviaram
um postal de Luanda?
por que há tempos o litoral do país
aprende outros continentes?
(…)
***
DESPEDIDA
Deixo o corpo, auê, ê.
Noutro campo
vejo os antigos.
Ergo a toalha
onde as cores são outras
(Lá fora gunga não chora).
Ergo espada com os antigos.
Noutro campo
aprendo o mesmo canto.
***
SÍLABA
Outra língua alicia o palato, não se quer instrumento de suicídio. Não pode ser engolida para selar o desejo. É para uso desobediente, sendo mais livre quanto mais nos pertence. A essa língua não se veda o devaneio, uma vez afiada a vida e tudo que se queira. Não está na boca e nela se arvora. Testa o sentido, duvida de si mesma. Vai ao baile, está nua ao meio-dia. Não é língua do suplício nem do vexame, desenrola os signos e se pronuncia.
Clique nas imagens para saber mais sobre essa notável poeta sãotomeense e sobre o papel estratégico desempenhado pelo arquipélago onde ela nasceu para a construção histórica e cultural do Atlântico Negro lusófono.
CANTO OBSCURO ÀS RAÍZES
Em Libreville
não descobri a aldeia do meu primeiro avô.
Não que me tenha faltado, de Alex,
a visceral decisão.
Alex, obstinado primo
Alex, cidadão da Virgínia
que ao olvido dos arquivos
e à memória dos griots Mandinga
resgatou o caminho para Juffure,
a aldeia de Kunta Kinte —
seu último avô africano
primeiro na América.
Digamos que o meu primeiro avô
meu último continental avô
que da margem do Ogoué foi trazido
e à margem do Ogoué não tornou decerto
O meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas, quem sabe, talvez, Abessole
O meu primeiro avô
que não morreu agrilhoado em James Island
e não cruzou, em Gorée, a porta do inferno
Ele que partiu de tão perto, de tão perto
Ele que chegou de tão perto, de tão longe
Ele que não fecundou a solidão
nas margens do Potomac
Ele que não odiou a brancura dos algodoais
Ele que foi sorvido em chávenas de porcelana
Ele que foi compresso em doces barras castanhas
Ele que foi embrulhado em chiques papéis de prata
Ele que foi embalado para presente em caixinhas
O meu concreto avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas talvez, quem sabe, Abessole
O meu oral avô
não legou aos filhos
dos filhos dos seus filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido.
Na curva onde aportou
a sua condição de enxada
no húmus em que atolou
a sua acossada essência
no abismo que saturou
de verde a sua memória
as águas melancolizam como fios
desabitadas por pirogas e hipopótamos.
São assim os rios das minhas ilhas
e por isso eu sou a que agora fala.
Brotam como atalhos os rios
da minha fala
e meu trazido primeiro avô
(decerto não foi Kunta Kinte,
porventura seria Abessole)
não pode ter inventado no Água Grande
o largo leito do seu Ogoué.
Disperso num azul sem oásis
talvez tenha chorado meu primeiro avô
um livre, longo, inútil choro.
Terá confundido com um crocodilo
a sombra de um tubarão.
Terá triturado sem ilusão
a doçura de um naco de mandioca.
Circunvagou nas asas de um falcão.
Terá invejado a liquidez de caudas e barbatanas
enquanto o limo dos musgos sequestrava os seus pés
e na impiedosa lavra de um vindouro tempo
emergia uma ambígua palavra
para devorar o tempo do seu nome.
Aqui terá testemunhado
o esplendor do pôr do sol, o luar, o arco-íris.
Decerto terá pressentido a calidez dos pingos
nas folhas das bananeiras.
E terá sofrido no Equador o frio da Gronelândia.
Mas não legou aos estrangeiros filhos
e aos filhos dos filhos dos estrangeiros filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido.
Por isso eu, a que agora fala,
não encontrei em Libreville o caminho para a aldeia de Juffure.
Perdi-me na linearidade das fronteiras.
E os velhos griots
os velhos griots que detinham os segredos
de ontem e de antes de ontem
Os velhos griots que pelas chuvas contavam
a marcha do tempo e os feitos da tribo
Os velhos griots que dos acertos e erros
forjavam o ténue balanço
Os velhos griots que da ignóbil saga
guardavam um recto registo
Os velhos griots que na íris da dor
plantaram a raiz do micondó
partiram
levando nos olhos o horror
e a luz da sua verdade e das suas palavras.
Por isso eu que não descobri o caminho para Juffure
eu que não dançarei sobre o pó da aldeia do meu primeiro avô
meu último continental avô
que não se chamava Kunta Kinte mas talvez, quem sabe, Abessole
Eu que em cada porto confundi o som da fonte submersa
encontrei em ti, Libreville, o injusto património a que chamo casa:
estas paredes de palha e sangue entrançadas,
a fractura no quintal, este sol alheio à assimetria dos prumos,
a fome do pomar intumescida nas gargantas.
Por isso percorri os becos
as artérias do teu corpo
onde não fenecem arquivos
sim palpita um rijo coração, o rosto vivo
uma penosa oração, a insana gesta
que refunda a mão do meu pai
transgride a lição de minha mãe
e narra as cheias e gravanas, os olhos e os medos
as chagas e desterros, a vez e a demora
o riso e os dedos de todos os meus irmãos e irmãs.
Que nenhum idioma nos proclame ilhéus de nós próprios
vocábulo que não és
Mbanza Congo
mas podias ser
Que não és
Malabo
poderias ser
Que não és
Luanda
e podias ser
Que não és
Kinshasa
nem Lagos
Monróvia não és, podias ser.
Nascente e veia, profundo ventre
conheces a estrutura que sabota os ponteiros:
novos sobas, barcos novos, o conluio antigo.
E consomes a magreza dos celeiros
num bazar de retalhos e tumultos
Petit Paris!
onde tudo se vende, se anuncia
onde as vidas baratas desistiram de morrer.
Medram quarteirões de ouro
nos teus poros — diurnos, desprevenidos.
Medra implacável o semblante das mansões
Medram farpas na iníqua muralha
e um taciturno anel de lama em seu redor.
A chuva tem agora a cadência de um tambor
outro silêncio se ergue
no vazio dos salões das coiffeuses.
E no rasto do tam-tam revelarei
o medo adolescente encolhido nas vielas
beberei a sede da planta no teu grão.
Eu que trago deus por incisão em minha testa
e nascida a 8 de Dezembro
tenho de uma madona cristã o nome.
A neta de Manuel da Madre de Deus dos Santos Lima
que enjeitou santos e madre
ficou Manuel de Deus Lima, sumu sun Malé Lima
Ele que desafiou os regentes intuindo nação —
descendente de Abessole, senhor de abessoles.
Eu que encrespei os cabelos de san Plentá, minha três vezes avó
e enegreci a pele de san Nôvi, a soberana mãe do meu pai.
Eu que no espelho tropeço
na fronte dos meus avós…
Eu e o temor do batuque da puíta
o terror e fascínio do cuspidor de fogo
Eu e os dentes do pãuen que da costa viria me engolir
Eu que tão tarde descobri em minha boca os caninos do antropófago…
Eu que tanto sabia mas tanto sabia
de Afonso V o chamado Africano
Eu que drapejei no promontório do Sangue
Eu que emergi no paquete Império
Eu que dobrei o Cabo das Tormentas
Eu que presenciei o milagre das rosas
Eu que brinquei a caminho de Viseu
Eu que em Londres, aquém de Tombuctu
decifrei a epopeia dos fantasmas elementares.
Eu e minha tábua de conjugações lentas
Este avaro, inconstruído agora
Eu e a constante inconclusão do meu porvir
Eu, a que em mim agora fala.
Eu, Katona, ex-nativa de Angola
Eu, Kalua, nunca mais em Quelimane
Eu, nha Xica, que fugi à grande fome
Eu que libertei como carta de alforria
este dúbio canto e sua turva ascendência.
Eu nesta lisa, escarificada face
Eu e nossa vesga, estratificada base
Eu e a confusa transparência deste traço.
Eu que degluti a voz do meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas talvez, quem sabe, Abessole
Meu sombrio e terno avô
Meu inexorável primeiro avô
que das margens do Benin foi trazido
e às margens do Benin não tornou decerto
Na margem do Calabar foi colhido
e às águas do Calabar não voltou decerto
Nas margens do Congo foi caçado
e às margens do Congo não tornou decerto
Da nascente do Ogoué chegou um dia
e à foz do Ogoué não voltou jamais.
Eu que em Libreville não descobri a aldeia
do meu primeiro avô
meu eterno continental avô
Eu, a peregrina que não encontrou o caminho para Juffure
Eu, a nómada que regressará sempre a Juffure.
***
ANTI-EPOPEIA
Aquele que na rotação dos astros
e no oráculo dos sábios
buscou de sua lei, e mandamento
a razão, a anuência, o fundamento
Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha
Aquele cujo trono dos mortos provinha
Aquele quem a voz da tribo ungiu
chamou rei, de poderes investiu
Por panos, por espelhos, por missangas
por ganância, avidez, bugingangas
as portas da corte abriu
de povo seu reino exauriu.
***
ZÁLIMA GABON
À memória de Katona, Atúpa Grande
e Atúpa Pequeno
À Makolé
Falo destes mortos como da casa, o pôr-do-sol, o curso d’água.
São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo
e uma longa, centenária, resignada fúria.
Por isso não os confundo com outros mortos.
Porque eles vêm e vão mas não partem
Eles vêm e vão mas não morrem.
Permanecem e passeiam com passos tristes
que assombram a lama dos quintais
e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte
pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões.
Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram.
Erguem-se depois e marcham com passos de guerrilha
Não abafem o choro das crianças, não fujam
Não incensem as casas, não ocultem a face
Urgente é o apelo que arde por onde passam
Seus corações deambulam à sombra nas plantações.
Por isso não os confundo com outros mortos
apaparicados com missas, nozados, padres-nossos.
Por remorso, temor, agreste memória
Por ambígua caridade, expiação de culpa
aos mortos-vivos ofertamos a mesa do candjumbi
feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi.
Para aplacar sua sede de terra e de morada
Para acalmar a revolta, a espera demorada.
Eles porém marcharão sempre, não dormirão
recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido
acesa sua cólera antiga, seu grito fundo
ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua.
Eis por que vigiam estes mortos a nossa praça
seu é o aviso que ressoa no umbral da porta
na folhagem percutem audíveis clamores
a atormentada ternura do sangue insepulto.
***
A CASA
Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
O basalto negro, poroso
viria da Mesquita.
Do Riboque o barro vermelho
da cor dos ibiscos
para o telhado
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
O quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
Recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar –
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.
***
DESCOBERTA
Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos.
E na dura travessia do deserto
Aprendemos que a terra prometida
era aqui.
Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas indómitas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.
***
SÓYA
Há-de nascer de novo o micondó –
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.
Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.
Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.
Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as trancas no leito ressuscitado.
Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.
***
AFROINSULARIDADE
Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações
engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras
Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas
E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes – cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.
E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d’ óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans
E aos relógios insulares se fundiram
os espectros – ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas
Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.
***
QUANDO O LUAR CAIU
Quando o luar caiu e
tingiu de escuro os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.
Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites o teu nome.
Não eras.
As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.
Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no teu tempo consumido.
As pedras crescem como ondas
no silêncio do teu corpo.
Jorram e rolam
como flores violentas.
E sangram como pássaros exaustos
no silêncio do teu corpo
onde a noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.
Súbito e transparente chegaste
quando falsos deuses subornavam o tempo,
chegaste sem aviso
para despedir o defeso e o frio,
chegaste quando a estrada se abria
como um rio,
chegaste para resgatar sem demora o princípio.
Grave o silêncio agarra-se ao teu corpo,
hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo
mas já tomaste horas e caminhos
já venceste matos e abismos
já a espessura do obô resplandece em tua testa.
E não me bastam pombas dementes no teu rosto
não bastam consciências soluçante em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.
Cantarei em pranto teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre esta terra teu destino de rebelde.
Para te saudar no mar e
na manhã dos cantos sem represas
saudarei a praia lisa e o pomar.
Direi teu nome e tu serás.
***
A MÃO DO POETA
Ao Fred Gustavo dos Anjos,
depois de ter lido Paisagens e Descobertas
O poeta, é sabido, conhece
o sentido da sua mão
e perdoa a bizarria
de crescer sozinha
com o impulso da ave
ou o fermento do pão
Porque ele sabe que a mão
o prende à raiz do chão
onde o rigor do seu“não!”
varre da casa a podridão
Por isso, se o poeta à praça traz
seus dentes caídos, a face desfeita
é para perscrutar no mastro
o pano que drapeja
e corrigir com a mão
a direcção do vento.
***
A OUTRA PAISAGEM
Da lisa extensão dos areais
Da altiva ondulação dos coqueirais
Do infindo aroma do pomar
Do azul tão azul do mar
Das cintilações da luz no poente
Do ágil sono da semente
De tudo isto e do mais –
a redonda lua, orquídeas mil, os canaviais –
de maravilhas tais
falareis vós.
Eu direi dos coágulos que mineram
a fibra da paisagem
do jazigo nos pilares da Cidade
e das palavras mortas, assassinadas
que sem cessar porém renascem
na impura voz do meu povo.
***
VERSÃO DE DESERTO
Trazido não sei por que apelos, urgências
Vieste impugnar o momento que me cerca.
Demora – conclamas – a clara voz em minha boca.
Peço-te porém que repares:
não agonizam dunas nestes campos.
Aqui não jazem ossadas sem registo
nem apodrecem espectros de
perdidas caravanas.
Nenhum trilho foi abandonado
e não reneguei
Não, não reneguei
o nome do pai do meu pai
O meu deserto é a vertical semente de um barco.
O areal (seu brilho de nada e de lago)
não é senão a metáfora de uma horta
talvez uma projectada cisterna.
Esta claridade nos olhos do griot cego
este reflexo que obscurece a luz do dia
não irradia de um céu empedernido —
a minha fome não é a maldição
do velho deus inclemente.
E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha
e tenho por estigma
a memória de um longo fratricídio.
Mas estou aqui
sob este sol que alucina
a savana ao meio-dia.
Aqui, sob este toldo rasgado
onde envergo a sede dos meus ossos
e perduro sem jardim nem chuva
sem tambores nem flauta
sem espelhos,
companheira do tempo que amarra
as minhas veias ao umbigo do poço.
Não, nenhum trilho foi esquecido,
e venero o profano nome do pai do meu pai.
Lenta a vertigem vai esculpindo
os murmúrios de um rio incerto —
planto estacas
em redor da vigília dos meus mortos.
Não anuncio.
Tardo e não prenuncio reino ou abismo.
Não sou mensageira de vãos sacrifícios,
épicas derrotas, novos caminhos.
Aqui onde o inferno acontece
neste lugar onde me derramo e permaneço
inauguro a véspera da minha casa.
O meu silêncio franqueia
o umbral de qualquer coisa.
***
PARA TE ENCONTRAR
Para te encontrar levantarei os prumos.
Inventarei a casa nos mesmos rios
Para nos descobrir
***
O CATACLISMO E AS CANÇÕES
Feliz o que de mim restar, depois de mim
Se uma só das canções cantadas
Viver além daquele que em mim agora canta.
Da hecatombe não salvaria contudo
Uma só das canções que cantei e canto.
Às entranhas do olvido
Antes roubaria o riso das crianças
E a idade do provérbio.
Assim aos vindouros
Intacto ofertaria o enigma da luz.
***
FRONTEIRA
Trespassar é a sina dos que amam o mar.
***
ESTA VIAGEM
Esta viagem não responde às minhas perguntas.
Trespassei o aço das certezas.
Heranças, devorei-as.
A etapa seguinte rasga a prévia cartografia
Toda a fronteira é um apelo à renúncia.
Perscrutei mares cidades sinais nas pedras papiros.
Ao encontro da linguagem da tribo azul
cada passo me afasta de um rito sagrado.
Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão:
a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas.
Vítima da memória, nenhum deus me acolhe à chegada.
***
SEMENTES
Não procurem no vazio das cavernas
a marca primordial, a germinação.
Cavernas são cavernas.
Na onda se inscreve todo o princípio
as sementes da blasfémia e da redenção.
Sempre atenta para as intensas experiências às quais estão expostas, na sociedade racista, corporeidades e subjetividades afrodescendentes, na obra ampla e variada assinada pelo poeta paulista Cuti nota-se a predominância de um discurso introspectivo que busca a afirmação estético-identitária do negro mergulhando no enfrentamento às ambiguidades e indefinições que permeiam essas experiências. O trabalho inventivo com a linguagem também se mostra um recurso assíduo para a elaboração de imagens aguçadas e multifacetadas de (auto)questionamento. Além desses dois traços formais aqui ressaltados (e que também se relevam em vários dos poemas da moçambicana Noémia de Souza e do angolano Agostinho Neto), muitos outros elementos confirmam os densos vínculos que a voz literária de Cuti estabelece com a poética da Negritude.
EU NEGRO
Areia movediça na anatomia da miséria
Pano-pra-manga na confecção apressada de humanidade
Chaga escancarada contra o riso atômico dos ladrões
Espinho nos olhos do esquecimento feliz de ontem
Eu
Eu feito de sangue e nada
De Amor e Raça
De alegrias explosivas no corpo do sofrimento e mágoa.
Ponto de encontro das reflexões vacilantes da História
Esperança fomentada em fome e sede
Eu
A sombra decisiva dos iluminismos cegos
O câncer dos humanismos desumanos
Eu
Eu feito
De Amor e Raça
De alegrias incontroláveis que arrebentam as rédeas dos sentimentos egoístas
Eu
Que dou vida às raízes secas das vegetações brancas
Eu
QUEBRANTO
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto que me entrego
às vezes…
TORPEDO
irmão, quantos minutos por dia
a tua identidade negra toma sol
nesta prisão de segurança máxima?
e o racismo em lata
quantas vezes por dia é servida a ela
como hóstia?
irmão, tua identidade negra tem direito
na solitária
a alguma assistência médica?
ouvi rumores de que ela teve febre alta
na última semana
e espasmos
– uma quase overdose de brancura –
e fiquei preocupado.
irmão, diz à tua identidade negra
que eu lhe mando um celular
para comunicar seus gemidos
e seguem também
os melhores votos de pleno restabelecimento
e de muita paciência
para suportar tão prolongada pena
de reclusão.
diz ainda que continuamos lutando
contra os projetos de lei
que instauram a pena de morte racial
e que ela não tema
ser a primeira no corredor
da injeção letal.
irmão, sem querer te forçar a nada
quando puderes
permite à tua identidade negra
respirar, por entre as mínimas grades
dessa porta de aço
um pouco de ar fresco.
sei que a cela é monitorada
24 horas por dia.
contudo, diz a ela
que alguns exercícios devem ser feitos
para que não perca completamente
a ginga
depois de cada nova sessão de tortura.
irmão, espero que esta mensagem
alcance as tuas mãos.
o carcereiro que eu subornei para te levar o presente
me pareceu honesto
e com algumas sardas de solidariedade.
irmão, sei que é difícil sobreviver
neste silencioso inferno
por isso toma cuidado
com a técnica de se fingir de morto
porque muitos abusaram
e entraram em coma
fica esperto!
e não esquece o dia da rebelião
quando a ilusão deve ir pelos ares.
um grande abraço
deste teu irmão de presídio
assinado:
zumbi dos palmares
POEMA
trabalho em transe
do coração à tez
overdose
e osmose
de lucidez
PERGUNTAS
Quem conhece meus Nilos de dentro
meus rios
raízes que regam felizes
a carne do Brasil?
Quem conhece meus rios
meus cios
sonhadas carícias de vida melhor?
Aquele que sabe
do sabre que corta na minha garganta
a voz dos meus rios
não sabe a denúncia tão cheia em meus olhos
não sabe da quebra de pontes
das fontes violentas que rasgam feridas na terra?
não sabe da febre agitada do mar
depois da viagem em meu transe atlântico
há tempos atrás?
Quem conhece as águas doces do meu canto
salgadas do meu pranto
e as correntezas do fundo
dos meus rios
que engravidam o mar?
NASCENTE
o broto brota sob a bota
que pisa
a gente cala por enquanto
porque precisa
a nossa fala que o tambor fala
é brisa
do novo que há de ver
a palma
a calma trancada e reprimida
a trama já tramada que tá verde
a verde verdade preta amadurece
ama e cresce sob a bota
imagem dum pilão que moe que soca
o broto brota sob a bota
que pisa
o broto brotalvorada
e nova rota
e grita
o broto é negro como o riso-terra
e espera que apenas outros
bebam do suor dos rios.
MÁRTIR LUTA NO RINGUE
não são ventos alísios
que nos espicham cabelos e medos
de sermos o que já não sabemos
que somos
não se trata de moda
este raspar a cabeça de jogadores
e bailarinos
e dos jovens todos que os imitam
quando o coração é um mártir
a antimemória seu ringue
o adversário (não disfarça)
está sempre à nossa frente
com seu ódio viking
essa vergonha no cabelo
balançando ao vento
um corte no supercílio
dificultando ver
o inimigo
porque o sangue escorre
pelo nosso rosto
invisível.
NEGROESIA
enxurrada de mágoas sobre os paralelepípedos
por onde passam carroções de palavras duras
com seus respectivos instrumentos de tortura
entre silêncios
augúrios de mar e rios
o poema acende seus pavios
e se desata
do vernáculo que mata
ao relento das estrofes
acolhe os risos afros
embriagados de esquecimento e suicídio
no horizonte do delírio
e do âmago do desencanto contesta as máscaras
lançando explosivas metáforas pelas brechas dos
poesídios
contra o arsenal do genocídio.
RESGATE
gueto e quietude encurralados
dentro do próprio
rio de encantos passados
hoje resgato
res-gueto
e não bastam
toscos tótens atônitos
sem dentro
ante os múltiplos
milagres técnicos
aconchego-me no côncavo deste abraço
ancestral
adormeço de cansaço
lanças de outrora
já não servem
para defender o sonho
enquanto balas e mísseis
cruzam o espaço em direção à morte
somente as deste fogo-afago
desferidas
para incendiar ao menos
de liberdade
um coração.
PORTO-ME ESTANDARTE
minha bandeira minha pele
não me cabe hastear-me em dias de parada
um século de hipocrisia após
minha bandeira minha pele
não vou enrolar-me, contudo
e num canto
acobertar-me de versos
minha bandeira minha pele
fincado estou na terra que me pertenço
fatal seria desertar-me
alvuras não nos servem como abrigo
sem perigo
lágrimas miçangas
enfeitam o país
a iludir o caminho
em procissões e carnavais
minha bandeira minha pele
o resto
é gingar com os temporais
AMOR
Amo esta minha terra
onde os ossos de meus avós
gritam o grito interno dos ossos
na carne do chão
e Oxumaré sobe em riso e clarão
esta terra
onde os rios contam a história
de lutas quilombolas
a quem não tapa os ouvidos
Amo esta terra
do café da cana do ouro
do sangue do sangue do sangue
do meu sangue
esta terra Brasil
do carnaval do futebol do anil
do suor do suor do suor
do meu suor
esta terra
em que confundem amor e prata
violência e nada
exploração e paz
esta terra
recortada por veias negras
abertas
esta terra
onde donos brancos
jogam no barranco
os sonhos do povo
esta terra
onde a fome que mina
a força dos filhos
é a mina lucrativa de uns poucos
Amo a terra
e o interior dela
esta terra
África enterrada
a custa de porrada
viva
e que respira
a respiração que inspira
seus filhos
esta terra
coração da Diáspora
onde brancos
se envergonham de serem negros
Amo esta terra
negra
de suor
suor
suor
sangue
sangue
sangue
e pele
ESTÉTICA
quando o escravo
surrupiou a escrita
disse o senhor:
— precisão, síntese, regras
e boas maneiras!
são seus deveres
enxurrada se riu demais em chuva
do conta-gotas e sua bota de borracha rota
na maior despercebida enchente daqueles tempos
adjetivos
escorrendo ainda hoje
em negrito.
IMPASSES E PASSOS
algemas do pão e do circo
e seu cotidiano cerco
às investidas do sonho
sono coletivo produzido em gabinetes
sono sem sonho
esclerose de nuvens brancas trotando trêfegas
esporas reluzentes
sobre nossos corações
a pergunta eleva sua crista:
– quem dentre nós mais de trezentos anos
de ruínas de quilombos
traz dentro do peito?
por muito tempo, ainda, mastigaremos o silêncio
no caminho para o grande lar
que já não temos?
no trajeto o enfrentamento
com as sereias e seu canto
sussurrado pelo vento
laços sedutores
para o nosso enforcamento
politicamente incorreta
sempre
a orgia das correntes
nosso medo balbuciando morte
em conta-gotas de sambas e serpentes
de repente
escorpiões encalacrados nos tornamos
(apesar de sorridentes)
sem disfarce
o que em face do desprezo se acende
contra o nosso próprio veneno
o “eu” se deita sobre o feno
negaceia o nós em movimento
da garganta se desatam para dentro
ecos que no lamento se afogam
o sol renitente ressuscita
a vida emboscada nas veredas
toco em brasa
a questão vem crepitada
fecunda e permanente
rolando
pelos glóbulos pretos
infectados de rancores brancos:
– quem tem mais de 300
de resistência no abismo?
silêncio incandescente
morre a esperança
em overdose de cinismo
e desabrocha a consciência em cactos
depois da chuva
somos
o horizonte e sua língua de arco-íris
descobrindo
o nosso próprio amanhecer.
OFÍCIO DE FOGO E ARTE
nossa é esta saga desenhando o silêncio em cores
rebeldia e incenso
ainda que as batalhas
tenham talhado de tão somente vermelho
lembranças de mar e terra
nosso é este futuro entre luz e sombra
este alto-relevo telúrico
agigantando-se no esboço de todas as madrugadas e no mosaico das tardes
em ondulação muscular galopam as tintas
ao comando de corações pensantes
enquanto gritos vão-se fazendo cantigas sábias
de ninar a memória e seus pincéis incandescentes
se ácidos céus de aço abafam a singela respiração onírica
um afro horizonte reabre seus vitrais
oxumarescendo a vida
nos cios dos séculos
banzaram aguadas lacrimais de anil
agora a mais sutil semelhança epidérmica da história
é linha que realça o elo
do mistério
ousadias de gingar o belo e semear vagalumes sobre as
telas
oceânica
esta energia coletiva extrapola a cena de naturezas-mortas
transfigura a moldura
colore a parede branca
e mergulha em vários planos a perspectiva de seus voos
verdeamarelas garatujas velhas ranzinzando a liberdade
a mão infinitiza em multiplicidade cromática, pele e
paisagem de sobejos desejos
tudo se emprenha de um incessante movimento
vários tons de melanina e a pulsação de um ritual aceso.
CULTURA NEGRA
ariânico afago
na suposta acocorada
afroinfância literária
nossa cor sim
e não
reelabora elegbará
orixás não tomam chás de academias
tampouco em mídia sui-seda
cedem
poema de negrura exposta
tece vida
na resposta
abrindo a porta enferrujada do silêncio
explodem
coices
o boi e o bode
entre folclóricas nuvens e teses
de negrófobas carícias
alvos, a-tingidos desesperam
em busca de tambores
ritos
puros mitos
em águas paradas
de poemas pardos
que lhes salvem da chuva de negrizo.
PA(Z)XORÔ
ainda assim… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência universal dos sonhos
onde a veste de pazciência
envolve a todos
e as mãos
modelam o ser nascente
olhar adentro
o todo é cada um
e há ondulações de calma
corpo e alma fundidos num só voo
desta ave celestial de luz
abraçando-nos com a abóbada infinita e azul
chuva-sêmen e afã de fecundar novas manhãs
ao fluxo ijexá de oxalufã
fé obstinada que nos guia
sol de oxaguiã
nas lutas do dia a dia
pilão
inhame de juventude
alegria
ainda que… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência concha universal do sonho paz
adjá a nos conduzir à fonte
e o mundo a ser lavado
nas águas de oxalá.
ZUMBI OR NOT ZUMBI
(ao negro de alma branca)
permanece encasulado
até que as labaredas cheguem
de teu abrigo
façam fumaça
e alguém diga: coitado!
nem penses o fogo te vindo ao longe
marchando brasas
em horizonte raivoso
não! é dentro que nasce
suave
do mais íntimo da tua sombra
aí
onde o pavio incandesce em risadas
tua coragem quilombo
por hora continua no teu casulo
ruminando ruínas
afugentando marulhos
dessa tua travessia
em que és barco
e prisioneiro acorrentado no próprio porão
a ilusão é branca
e te abraça por todos os nadas
por mais que faças
no uso de tuas máscaras
ao despertares ao som
zumbiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…
não te assustes
é o saci
caminhando com as duas pernas sobre as águas
apesar dos tubarões
e suas fúrias afiadas
na luxúria do teu medo
um dia darás o primeiro passo
sem afundar
teu coração no horizonte
um sol de inverno
espera
a primavera.
COM A PORTA ABERTA
o que é que vai ser
quando o samba abrir uma fenda
bem no meio da sinfonia?
com’é que vai ficar, compadre
quando a macumba
entrar na sacristia?
e quando a pureza da cultura abrir as pernas
e mostrar pra todo mundo
que nunca teve cabaço
a dança de terreiro
rasgar terno e gravata
a ginga der meia-lua-de-compasso na compostura
a gente puder falar
sem algema ou atadura
a verdade
partir a cara da hipocrisia
o pão for repartido na marra?
não adianta fechar a cara
nem se fazer de besta
qu’Exu vai rir na abertura da festa
e Cristo vai gargalhar pela primeira vez na história
e
viva o pagode
da memória liberta
e do futuro concebido
com a porta aberta!
NEGRITUDE
[CELINHA]
Para Jorge Henrique Gomes da Silva
De mim
parte um canto guerreiro
um voo rasante, talvez rumo norte
caminho trilhado da cana-de-açúcar
ao trigo crescido, pingado de sangue
do corte do açoite. Suor escorrido
da briga do dia
que os ventos do sul e o tempo distante
não podem ocultar.
De mim
parte um abraço feroz
um corpo tomado no verde do campo
beijado no negro da boca da noite
amado na relva, gemido contido
calado na entranha
oculto do medo da luz do luar.
De mim
parte uma fera voraz
(com sede, com fome)
de garras de tigre
pisar de elefante correndo nas veias
de fogo queimando vermelho nas matas
Rugir de leões bailando no ar.
De mim
parte de um pedaço de terra
semente de vida com gosto de mel
criança parida com cheiro de luta
com jeito de briga na areia da praia
de pele retinta, deitada nas águas
sugando os seios das ondas do mar.
De mim
parte N E G R I T U D E
um golpe mortal
negrura rasgando o ventre da noite
punhal golpeando o colo do dia
um punho mais forte que as fendas de aço
das portas trancadas
da casa da história.
***
CRISTÓVÃO-QUILOMBOS
[JAMU MINKA]
Fez-se a ganância
diabólicos destinos de um caminho sem volta
espíritos e corpos armados nascem do imenso ventre das
águas fantásticas
o outro lado do mundo possível
Terrágua, uma bola de vida no cosmo
1492, Colombo!
Naus enormes, engenhocas inéditas — a roda, arma de
fogo —
múltiplos poderes desconhecidos
homens-deuses barbados, brancos, loiros e ruivos
e seus olhos coloridos de cobiça
Piratas no paraíso
Europa rouba tudo
ouro e prata, milho, batata
cana e canga em corpos de América e África
Pós impacto do primeiro engano
— a visita era conquista e seus horrores —
deuses invadidos trovejam tambores
e cospem flechas de rebeldia
Depois de Colombo e sua maldita herança
— calombos e mutilações em milhões de corpos —
Quilombos por toda parte.
***
EFEITOS COLATERAIS
[JAMU MINKA]
Na propaganda enganosa
paraíso racial
hipocrisia faz mal
nosso futuro num saco
sem fundo
a gente vê
e finge que não vê
a ditadura da brancura
Negros de alma negra se inscrevem
naquilo que escrevem
mas o Brasil nega
negro que não se nega.
SAFÁRI
[Jamu Minka]
Aquela tigresa é tanta
que me almoça e janta
faço de conta que a sala é ponto
na geografia da África
e o tapete vira suave savana ao entardecer
quando a pele da noite vem camuflar
nosso safári safado.
Olho por olho
dente por dente
recuperamos o pente
ancestral
o impossível continha o bonito
caracol
carapinha
bumerangue infinito
Olho que revê o que olha
dedos que sabem trançar ideias
do original azeviche
princípio do mundo
Se o cabelo é duro
cabe ao pente ser suave serpente
o fundamental dá beleza
a quem não tem preconceito
e conhece segredos da
C R E S P I T U D E
***
TRAÇADO
[MÁRCIO BARBOSA]
O traço saído
ao crespo estilo
do teu cabelo
trançado e escuro
já mora em meu olho
VERSÃO
[MÁRCIO BARBOSA]
Negro é o amor onde habito silente
a cor talhada na dor da senzala
resumo de vida em ferro e carvão
Negro é o amor forjado no tempo
pretume piche azeviche
tição aceso na tez
do instinto de luta o peito é abrigo
o riso é fluência de um novo começo
***
CABELOS QUE NEGROS
[OLIVEIRA SILVEIRA]
Cabelo carapinha,
engruvinhado, de molinha,
que sem monotonia de lisura
mostra-esconde a surpresa de mil
espertas espirais,
cabelo puro que dizem que é duro,
cabelo belo que eu não corto à zero,
não nego, não anulo, assumo,
assino pixaim,
cabelo bom que dizem que é ruim
e que normal ao natural
fica bem em mim,
fica até o fim
porque eu quero,
porque eu gosto,
porque sim,
porque eu sou
pessoa negra e vou
ser mais eu, mais neguim
e ser mais ser
assim.
SER E NÃO SER
[OLIVEIRA SILVEIRA]
O racismo que existe,
o racismo que não existe.
O sim que é não,
o não que é sim.
É assim o Brasil
ou não?
***
DANÇANDO NEGRO
[ÉLE SEMOG]
Quando eu danço
atabaques excitados,
o meu corpo se esvaindo
em desejos de espaço,
a minha pele negra
dominando o cosmo,
envolvendo o infinito, o som
criando outros êxtases…
Não sou festa para os teus olhos
de branco diante de um show!
Quando eu danço há infusão dos elementos,
sou razão.
O meu corpo não é objeto,
sou revolução.
***
LINHAGEM
[CARLOS ASSUMPÇÃO]
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Me envia mensagens do orum
Meus dentes brilham na noite escura
Afiados como o agadá de Ogum
Eu sou descendente de Zumbi
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim
Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Floridos como jardins
BATUQUE
[CARLOS ASSUMPÇÃO]
(Dança afro-tietense )
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor
É todo enfeitado de fitas
Vermelhas pretas amarelas e brancas
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Que evoca bravura dos nossos avós
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir
Todos os irmãos
De todas as cores
Sem distinção
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor
É todo enfeitado de fitas
Vermelhas pretas amarelas brancas azuis e verdes
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir
Todos os irmãos
Dispersos
Jogados em senzalas de dor
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que fala de ódio e de amor
Tambor que bate sons curtos e longos
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir
Todos os irmãos
De todas as cores
Num quilombo
Num quilombo
Num quilombo
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor
***
ZUMBI
[ABELARDO RODRIGUES]
As palavras estão como cercas
em nossos braços
Precisamos delas.
Não de ouro,
mas da Noite
do silêncio no grito
em mão feito lança
na voz feito barco
no barco feito nós
no nós feito eu.
No feto
Sim,
20 de novembro
é uma canção
guerreira.
***
MAHIN AMANHÃ
[MIRIAM ALVES]
Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanhã”.
A cidade toda se prepara
Malês
bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
“é aminhã, aminhã”
sussurram
Malês
bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luiza Mahin falo”
***
AS SAUBARAS INVISÍVEIS
[JÔNATAS CONCEIÇÃO]
A memória é redundante: repete os
símbolos para que a cidade comece
a existir.
Ítalo Calvino
Chega-se a Saubara pelo caminho do mar.
Às velas, barcas velhas velejam rumo à baía.
Viagem de gentes, trapos, mercadorias,
Odores repelentes que recendem tumbeiros
Travessia de longínquas noites
(“Aquela viagem era uma eternidade!”)
que ao vento cabia a tarefa de um porto feliz.
Chega-se a Saubara por via de muitos rios
Do rio para o mangue, do mangue-rio para o mar.
Caminhos do leva-e-traz mercantil
Ao porto de amaros negócios
Percurso de antigos navegantes
Fundadores do eterno dar-se saubarense
Desbravadores de restos da flora e fauna do lugar.
Chega-se, finalmente, a Saubara pelo primado da fé.
Seus marujos e rezadeiras procuram, há muito,
o caminho da salvação.
Seus filhos e netos, há pouco, descobriram outros
caminhos…
Procuram, pela novidade alheia, desesperadamente,
outra cidade inventar.
Os perseguidores da fé a tudo ver – oram choram
(“São Domingos que é de Gusmão que nos vele”)
as chamas das velas revelam.
***
OLHAR NEGRO
[ESMERALDA RIBEIRO]
Naufragam fragmentos
de mim
sob o poente
mas,
vou me recompondo
com o Sol
nascente,
Tem
Pe
Da
Ços
mas,
diante da vítrea lâmina
do espelho,
vou
refazendo em mim
o que é belo
Naufragam fragmentos
de mim
na coca
mas, junto os cacos, reinvento
sinto o perfume
de um novo tempo,
Fragmentos
de mim
diluem-se na cachaça
mas,
pouco a pouco,
me refaço e me afasto
do danoso líquido
venenoso
Tem
Pe
Da
Ços
tem
empilhados nas prisões,
mas
vou determinando
meus passos para sair
dos porões
tem
fragmentos
no feminismo procurando
meu próprio olhar,
mas vou seguindo
com a certeza de sempre ser
mulher
Tem
Pe
Da
Ços
mas
não desisto
vou
atravessando o meu oceano
vou
navegando
vou
buscando meu
olhar negro
perdido no azul do tempo
vou
voo,
***
A NOITE NÃO ADORMECE NOS OLHOS DAS MULHERES
[CONCEIÇÃO EVARISTO]
Em memória de Beatriz Nascimento
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
MALUNGO, BROTHER, IRMÃO
[CONCEIÇÃO EVARISTO]
No fundo do calumbé
nossas mãos ainda
espalmam cascalhos
nem ouro nem diamante
espalham enfeites
em nossos seios e dedos.
Tudo se foi,
mas a cobra deixa o seu rastro
nos caminhos por onde passa
e a lesma lenta
em seu passo-arrasto
larga uma gosma dourada que brilha no sol.
Um dia antes
um dia avante
a dívida acumula
e fere o tempo tenso
da paciência gasta
de quem há muito espera.
Os homens constroem
no tempo o lastro,
laços de esperanças
que amarram e sustentam
o mastro que passa
da vida em vida.
No fundo do calumbé
nossas mãos sempre e sempre
espalmam nossas outras mãos
moldando fortalezas esperanças,
heranças nossas divididas com você:
Malungo, brother, irmão.
***
ESPELHO
[Landê Onawale]
visto-me
e não olho para o que vejo
lanço-me ao fundo do espelho
apuro a visão até chegar
a mim
encontro-me
saio
***
SER INTELIGÍVEL E O INTELIGÍVEL DO SER PARA NÃO SER ININTELIGÍVEL
[Miriam Alves]
Entre o eu o infinito
construo a ponte
a ponte irreversível
da fala
da festa
do ontem
do hoje e amanhã
No espelho sou o olhar
o olhar que me percorre formas
e pela fresta sou eu espiando-me
inquieta
O coração em ritmo tambor
decifra mensagens
as palavras voam ao vento
Vão
E a cada tan-tan do coração
novas frases se formam
Vão
ao vento
o meu ser luma no seu contumaz leve brilho Vai
luzindo emoções indecifráveis
Voa Vai. Luzir Vai… Nos vãos da realidade…
um sonho Vai no lusco-fusco vespertino
aonde nos vãos da verdade os sonhos Vão
janelas abertas
lufadas penetram
trazendo sementes
Naquele meu vasinho de crisântemos que enfeita o
infinito da janela
entre as pequeninas flores-rosa-avermelhadas pousa
uma nova verdade
sementes de um futuro difuso
um poema se forma
na forma diáfana do tun-tun-tun-tan-tan do coração
em compasso de construção
desnudando o mundo num futuro crisântemo onde
o lusco-fusco é brilho intenso
onde as despedidas-de-verão se abrem a primaveras
de intenções
***
A FORÇA DA AFRICANIDADE
[Dirce Pereira do Prado]
No íntimo da palavra trabalho
Sinto a força da africanidade
Na coragem do povo negro
Ao transformar as opressões
No conhecimento da vida.
Sim, vivenciamos uma africanidade
Arraigada na humanidade
Ao acalentarmos um coração desesperado
Entre os conflitos culturais
Quando recebemos as proteções
Dos nossos ancestrais!
Logo, africanidade é negritude viva
Que dos seus ancestrais faz a história
Concentra os mistérios da vida
No tempo presente traz a vitória!
***
ECOS DA BATIDA
[Edson Robson Alves dos Santos]
Ecos da batida
Soltos pelo ar
A expressão rítmica
A nos unificar
“Omnirá”
Quebre os grilhões da diáspora
Unifique nossas vidas
Separadas pelo mar
Bate no coração a saudade
O canto espanta a tristeza
No balanço dos acordes
No ar, sou a liberdade
Levante a poeira
Deixe quebrar
Venha sambarregaear
Ao som de Omnirá
***
ENSINAMENTOS
[Esmeralda Ribeiro]
Ser invisível quando não se quer ser
é ser mágico nato.
Não se ensina, não se pratica, mas se aprende.
no primeiro dia de aula aprende-se
que é uma ciência exata.
O invisível exercita o ser “zero à esquerda”
o invisível não exercita a cidadania.
As aulas de emprego, casa e comida
são excluídas do currículo da vida.
Ser invisível quando não se quer ser
é ser um fantasma que não assusta ninguém.
Quando se é invisível sem querer
ninguém conta até dez
ninguém tapa ou fecha os olhos
a brincadeira agora é outra
os outros brincam de não nos ver.
Saiba que nos tornamos invisíveis
sem truques, sem mágicas.
Ser invisível é uma ciência exata.
Mas o invisível é visto no mundo financeiro
é visto para apanhar da polícia
é visto na época das eleições
é visto para acertar as contas com o Leão
para pagar prestações e mais prestações.
É tanto zero à esquerda que o invisível
na levada da vida soma-se
a outros tantos zero à esquerda
para assim construir-se humano.
***
MISTURASIL
[Jamu Minka]
Aventureiros e predadores expandem Portugal
aqui, abaixo da linha do equador
organizam o êxodo do Brasil vegetal
o vale-tudo inaugural dos escândalos
da futura Brasília capital
Tudo se mistura
mestidragem, malançagem
mancebia, sacristia
mamelusas e afroguesas escravizadas também abaixo
da linha da cintura
negócios e sacanagens da Causa Glande.
***
FUTURO
[Márcio Barbosa]
que áfrica
está estampada
nas pupilas
da vó negra
que dança
a congada?
quantos zumbis
vão surgir
na poesia
da periferia maltratada?
é nzinga
que dança
e ocupa o abraço
da menina de tranças?
que orixá
olha
por esse menino
que ama
jogar bola?
um sopro ancestral
de tambores e vozes
nos protege
do mal
o moderno, o novo
deságuam no rio
tradicional
não há povo
sem história
sem memória
coletiva
e é na pele
que essa memória
continua viva
(1864-1890, São Tomé e Príncipe)
AURORA
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!…flor, que esta minha alma adora.
És a luz, eu sou a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
Olha que esta paixão cruel, ardente,
Na resistência cresce, qual torrente;
É a paixão fatal que vem da morte.
É a paixão selvática da féra,
É a paixão do peito da pantera,
Que me obriga a dizer-te «amor ou morte!»
***
EU E OS PASSEANTES
Passa um inglesa,
E logo acode,
Toda supresa:
What black my God!
Se é espanhola,
A que me viu,
Diz como rola:
Que alto, Dios mio!
E, se é francesa:
Ó quel beau negre!
Rindo para mim.
Se é portuguesa,
Ó Costa Alegre!
Tens um atchim!
***
SERÕES DE S. TOMÉ
Meus olhos são como a noite
em que astro nenhum flutua
mas se o teu olhar o fita
na noite desponta a lua
Se os escravos são comprados
ó branca de além do mar
homem livre eu, sou escravo
comprado por teu olhar
Meu olhar é retratista
ò minha doce miragem
senão diz-me porque tenho
no meu peito a tua imagem
Roubei-te o primeiro beijo
o segundo foi-me dado
o terceiro, francamente,
creio que me foi roubado
A neve que cai na serra
define tudo em redor
quem se afoita a amar as brancas
se da neve têm a cor
As noites para serem belas
precisam milhões de sóis
a ti, negra como as noites,
apenas te bastam dois
Um dia a espuma dos mares
ao ver em si meu amor
Foi dizer baixinho à praia
– a Vénus mudou de cor
A nossa terra é tão bela
duma beleza sem par
E por ser assim formosa
Fê-la sua amante o mar…
***
A MINHA COR É NEGRA, INDICA LUTO E PENA;
É luz, que nos alegra,
A tua cor morena.
É negra a minha raça,
A tua raça é branca,
Tu és cheia de graça,
Tens a alegria franca,
Que brota a flux do peito
Das cândidas crianças.
Todo eu sou um defeito,
Sucumbo sem esperanças,
E o meu olhar atesta
Que é triste o meu sonhar,
Que a minha vida é esta
E assim há-de findar!
Tu és a luz divina,
Em mil canções divagas,
Eu sou a horrenda furna
Em que se quebram vagas!…
Porém, brilhante e pura,
Talvez seja a manhã
Irmã da noite escura!
Serás tu minha irmã?!…
***
A NEGRA
Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,
Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.
Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.
No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.
Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;
Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.
Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.
Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.
***
QUANDO EU MORRER
Não quero! Tenho horror que a sepultura
mude em vermes meu corpo enregelado.
Se no fogo viveu minha alma pura,
quero, morto, meu corpo calcinado.
Depois de ser em cinzas transformado,
lancem-me ao vento, ao seio da natura…
Quero viver no espaço ilimitado,
no mar, na terra, na celeste altura.
E talvez no teu seio, ó virgem linda,
tão branco como o seio da virtude,
eu, feito em cinzas, me introduza ainda.
E no teu coração, pequeno e forte,
(ó gozo triste!) viva eu na morte,
já que na vida lá viver não pude!
***
VISÃO
Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante;
Ias de luto, doce, tutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(o teu encanto, a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante.
***
PARA UM LEQUE
Se eu lhe fosse depor, minha senhora,
Por entre estas mentiras cor de aurora
Uma verdade sã e proveitosa,
Chamava-lhe vaidosa!
E, faça-me favor,
Não encrespe esse olhar acostumado
Ao falso galanteio delicado
E a finezas de amor.
II
Eu sei perfeitamente que Vocência
Possui a verve, a fina inteligência.
Que eu… não admiro, e toda a gente adora,
Duma mulher doutora.
Portanto vai então
Achar-me pouco amável no que digo,
Mas, por fim, há-de concordar comigo
E dar-me até razão.
III
Senão Vocência que me diga, franca,
Para que serve numa folha branca:
“A senhora é rainha da beleza;
Em graça e gentileza,
Um cisne a flutuar
Num lago não a iguala. Encanta, prende,
Como grades de ferro, a luz que esplende
Do seu profundo olhar”?
IV
Enfim, essas tolices que descubro
No leque, e que seu lindo lábio rubro
Agradece aos autores discretamente
Dizendo-lhes, ridente:
– Que bonitos que estão
Os versos!… Eu bem sei que não mereço
O que neles me diz, pois me conheço.
Mas… toque. E estende a mão
V
Suponha agora (é só por um momento)
Que esse escuro cabelo esparso ao vento,
Pelo vento é levado; em outros termos,
Para nos entendermos,
Suponha que ele cai,
Que o pouco que ficou se torna neve
E que a pele gentil do rosto breve
Encarquilhando vai!
(1904-1943, Moçambique)
SURGE ET AMBULA
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo avança, o tempo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E no outro tu dormes o teu sono infindo…
A selva faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo.
A terra e a escravidão têm aqui o seu império
E tu, ao tempo alheia, ó África, dormindo…
Desperta. Há muito que no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, ó escrava sonâmbula…
Desperta. O teu dormir é mais do que terreno…
Ouve a voz do progresso, este outro nazareno
Que a mão te estende e diz – “Africa, surge et ambula”
***
GRITO DE ALMA
Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.
Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!
Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.
Vai. Segue o teu destino. A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor…
***
NO CAIS
Há vibrações metálicas chispando
Nas sossegadas águas da baía.
Gaivotas brancas vão e vêm, bicando
Os peixes numa louca gritaria.
Escurece. Do largo vão chegando
As velas com a farta pescaria.
As bóias põem no mar um choro brando
De luzes a cantar em romaria.
E entretanto no cais as lides crescem.
Arcos voltaicos súbito amanhecem,
A alumiar guindastes e traineiras…
E ouve-se então mais forte, mais vibrante,
Os pretos a cantar, noite adiante,
Por entre a bulha e o pó das carvoeiras…
***
CARREGADORES
A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!…
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!…
À porta dos monhés, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestindo rotas sacas, tristemente
Lá vão ‘spreitando a carga pesadíssima…
Quantos velhinhos já, avós talvez,
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!
Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade…
***
QUENGUÊLÊQUÊZE!… (LUA NOVA)
“Quenguêlêquêze!… Quenguêlêquêze!”…
Surgia a lua nova,
E a grande nova
— Quenguêlêquêze!…— ia de boca em boca
Traçando os rostos de expressões estranhas,
Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,
Numa alegria enorme, uma alegria louca,
Loucamente,
Perturbadoramente…
Danças fantásticas
Punham nos corpos vibrações elásticas,
Febris,
Ondeando ventres, troncos nus, quadris…
E ao som de palmas
Os homens, cabriolando,
Iam cantando
Medos de estranhas vingativas almas,
Guerras antigas
Com destemidas ímpias inimigas
— obscenidades claras, descaradas,
Que as mulheres ouviam com risadas
Ateando mais e mais
O rítmico calor das danças sensuais.
“Quenguêlêquêze!… Quenguêlêquêze!…”
Uma mulher de vez em quando vinha,
Coleava a espinha,
Gingava as ancas voluptuosamente,
E diante do homem, frente a frente,
Punham-se os dois a simular segredos…
— Nos arvoredos
Ia um murmúrio eólico
Que dava à cena, à luz da lua, um que diabólico…
“…quêze! Quenguêlêquêze!…”
… Entanto uma mulher saíra sorrateira
Com outra mais velhinha;
Dirigiu-se na sombra à montureira,
Com uma criancinha.
Fazia escuro e havia
Ali um cheiro estranho
A cinzas ensopadas,
Sobras de peixe e fezes de rebanho
Misturadas… O vento, perpassando a cerca de caniço,
Trazia para fora o ar abafadiço,
Um ar de podridão…
E as mulheres entravam com um tição:
E enquanto a mais idosa
Pegava na criança e a mostrava à lua
Dizendo-lhe: “Olha, é a lua”,
A outra, erguendo a mão,
Lançou direito à lua a acha luminosa.
— O estrepitar de palmas foi morrendo…
E a lua foi crescendo… foi crescendo…
Lentamente…
Como se fora em brando e afogado leito
Deitaram a criança, revolando-a,
Ali na imunda podridão, no escuro,
Lhe deu o peito…
Então, o pai chegou,
Cercou-a de desvelos,
De manso a conduziu p´los cotovelos,
Tomou-a nos seus braços e cantou
Esta canção ardente:
“Meu filho, eu estou contente!
Agora já na temo que ninguém
Mofe de ti na rua,
E diga, quando errares, que tua mãe
Te não mostrou a lua!
Agora tens abertos os ouvidos
Para tudo compreender;
Teu peito afoitará, impávido, os rugidos
Das feras, sem tremer…
Meu filho, estou contente!
Tu és agora um ser inteligente,
E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte
Até que já cansado
Um dia muito velho
De filhos, rodeado,
Sentido já dobrar–se o teu joelho
Virá buscar-te a Morte…
Meu filho, eu estou contente!
Agora, sim, sou pai!…”
Na aldeia, lentamente,
O estrepitar das palmas foi morrendo…
E a lua foi crescendo…
— Crescendo
Como um ai…
***
PASSAS LEVE…
(a Jorge Netto)
I
Passas leve,
Levezinha,
Como a minha
Tentação.
Quem me dera
Tão ligeiro
Teu inteiro
Coração…
II
Passas rindo,
Confiada,
Doce fada
Do sertão.
Não te prendam
Nos caminhos
Os espinhos
Da ambição…
III
Vais correndo,
Vão cantando,
Vão saltando,
Brandos ais
Os teus seios
Negros, duros,
Como obscuros
Madrigais…
IV
Os teus olhos
São pecados
Que cuidados
Dão a Deus,
Quem me dera
Confessá-los,
Comungá-los
Com os meus…
V
Sempre humilde,
Sempre obscura,
Que tortura,
Teu viver?
És tão linda,
Tão mimosa,
Negra, goza,
Que és mulher!
***
PÓS DA HISTÓRIA
Caiu serenamente o bravo Quêto
Os lábios a sorrir, direito o busto
Manhude que o seguiu mostrou ser preto
Morrendo como Quêto a rir sem custo.
Fez-se silêncio lúgubre, completo,
no craal do vátua célebre e vetusto.
E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,
Fitava os dois, o olhar heróico, augusto.
Então Impincazamo, a mãe do vátua,
Triunfando da altivez humana e fátua,
Aos pés do vencedor caiu chorando.
Oh dor de mãe sublime que se humilha!
Que o crime se não esquece à luz que brilha
Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?
***
FÁBULA ANTIGA
Outrora, quando os animais falavam,
Conta Bocage que um leão, um dia,
Achou na selva um quadro — ó ironia!
Em que um leão mãos de homem dominavam.
Viu a afronta que ali representavam
E apenas disse à selva que o envolvia:
— “Fosse o leão pintor e ver-se-ia
Se era o homem ou os leões que triunfavam…
Tende sempre presente, os que zombais
Dos que não têm a cor que vós julgais,
Por ser a vossa, às outras, superior,
O que o leão da história, após o insulto,
Disse consigo, olhando o quadro estulto,
E imaginai se o leão fosse o pintor…